_____Revia, há dias, o poema Os Ombros Suportam o Mundo, do inesquecível Drummond de Andrade, escrito no final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial. Leitura interiorizada e começo a compreender, talvez, as emoções que têm vindo a assaltar-me o espírito nos últimos tempos. A fuga ao que faz ruído avassalador, a solidão presa no tempo, a ânsia superior de silêncio e de uma paz luminosa sem cores que possam ferir.
_____Porque o tempo de Drummond é um tempo presente.
_____O leitor não precisa de viver o momento do poeta para sentir a profundidade atemporal dos seus poemas. Cada pedaço de um passado é sempre presente dentro de quem sente o que lê; cada letra desenhada no pensamento, uma lição antecipada do futuro. Afinal, a vida é um ciclo e nós, em cada instante, a sua fala renovada.
_____Desumanamente continuamos a aprender a sobreviver a imprevistas mudanças mundiais e estupidamente premeditadas. Permanentemente nos confrontamos com a vulnerabilidade da vida, com a inevitabilidade da morte. O ódio invade todos os nobres gestos mais comuns e cada dia é um mérito à capacidade de reaprender a viver.
_____Tenho-me perguntado, vezes sem conta, onde cabe o coração de um poeta no meio do vendaval, da atrocidade, da lama e da destruição? Parece ser claro que é, tantas vezes, por entre o caos que a poesia dispersa todas as certezas da sua voz.
_____Mas a capacidade de criar começa a ficar comprometida face a uma violenta paisagem tão destituída de cor. Como conjugar o sentimento com a insensibilidade nascente que suporta a dor tamanha do sofrimento? Onde encontrar os paliativos para uma dor que os olhos obrigam o coração a ver e um quase ódio começa a emergir da impotência de pouco poder fazer?
_____Teria razão Pessoa, na sua Autopsicografia, quando dizia que um poeta é esse fingidor que chega a fingir a dor que deveras sente?
_____A alma de um poeta e essa contradição que lhe mora dentro do peito, de um coração que nunca para, mas cujo salto constante para fora o deixa exausto e desarmado. Sequiosa de impulsos num caminhar pelo tempo, agitada, sobressaltada, a alma de um poeta recheada de ecos e um coração que, por vezes, apenas ambiciona a leveza da pausa para se encontrar com o seu próprio olhar, com o seu próprio reflexo.
_____Sabiamente desconfiava Drummond que “todo o ser humano é um estranho ímpar”.
_____Hoje, porventura possa cair num sono lento e dentro dele sonhar que, entre luz e sombras, às cegas na perceção que tem de si mesmo, um poeta floresce sempre com renovado perfume no seu entendimento próprio do mundo. E feliz na ousadia de despontar sobre o tudo ou sobre o vazio do nada, onde despe o seu ventre quente de emoções. Afinal, é no fundo do seu silêncio que todas as palavras lhe nascem.
_____A verdade é que a curiosidade natural recai sobre o desnudar de um corpo. Mas a verdadeira beleza desprende-se na audácia de mostrar a alma nua aos olhos do mundo.
_____E se a poesia se degusta pelos sentidos e não pela razão, verso onde a realidade é pensamento tornado sentimento, com esse dom de aproximar corpos e preencher vazios, talvez por um minuto, talvez agora, talvez hoje apenas, aconchegado no leito de quem nele se revê, resta ao poeta, na sua desordem, a resposta à questão que grita por entre as sensações silenciadas: “posso fugir das minhas palavras para o teu abraço”?
TEXTO: Paula Freire
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Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras poéticas lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021. Há alguns anos, descobriu-se no seu ‘amor’ pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.
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