REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
_____Chego à escola. Pessoas entram e saem pelo portão. Olho os cartazes afixados nas paredes: em cada um, abaixo do número da seção, uma seta. 53, 65, 135... quem organizou isso, definitivamente, não entende patavina de sequência numérica e/ou de lógica, penso.
_____Onde diabos está a 142? me pergunto, virando a cabeça de um lado para o outro.
_____Súbito, feito a mutante Jean Grey, uma moça se aproxima, oferece-me ajuda. Leu minha mente, concluo. Observo o crachá que ela traz sobre a camiseta, concluo também: é servidora do TRE.
_____Pergunto pela seção 142; a moça aponta a última sala do corredor. “Ah, é a mesma do primeiro turno, então”, comento. Ela assente com a cabeça, se encaminha para auxiliar uma senhora que, com dificuldade, sobe a escada.
_____No corredor, telhas e caibros e ferragens expostos ao tempo, e ao olhar dos eleitores. Alguém comenta na fila da 140: “Desde o primeiro turno estão aí, de propósito, para mostrar que o governador está investindo na educação – pelo menos, investindo na estrutura predial da escola.” Subo alguns degraus, resmungando: “Quem não conhece o governador, que o compre”; posto-me na fila, atrás de um carinha de rastafári.
_____O mormaço e as nuvens baixas indicam que choverá no fim da tarde. Uma dona sai da cabina puxando um menino pelo braço. A mesária chama: “próximo”. O tom é imperativo, quase marcial, lembra-me a Sargento Megera.
_____O “próximo” adentra a sala. É um garoto magricela e, a julgar pelo rosto imberbe e o buço ralo, é a primeira eleição em que vota. Na idade dele, me recusei a tirar o título: se é facultativo, para quê votar, argumentei na época.
_____Uma das mesárias boceja, olha o relógio na parede. “Chega essa hora, dá uma moleza”, comenta para ninguém em particular. É quase meio-dia, eu nem preciso consultar o relógio para saber: meu estômago diz isso com todas as letras e ruídos... Como ninguém fala nada, digo à mesária: “Ainda mais com um tempinho desses”.
_____ “Bom para ficar em casa, deitada, vendo um filminho de terror”. Tenho vontade de lhe dizer que de aterrorizante bastam esses dias, mas me contenho: as pessoas andam muitos cismadas, paranoicas mesmo, vai que me acusam de praticar boca de urna... limito-me, pois, a comentar: “Quanto ao filme, discordo de você, prefiro os de aventura.”
_____O garoto sai, enfia de qualquer jeito o comprovante de votação e o título no bolso do short. “Próximo”. O carinha de rastafári acata o comando, entra na sala.
_____ “Já assistiu Cidade Perdida, com a Sandra Bullock?”, a moça indaga, respondo que não conheço. “Assiste, é muito bom. Tem aventura, tem comédia, você vai gostar... pena que matam o Brad Pitt logo no comecinho.” Sem perceber, ela soltou um spoiler.
_____A urna anuncia que o carinha terminou de votar.
_____“Deve ser pra reduzir o orçamento, porque o Brad cobra caro pra fazer um filme inteiro”. Sorrio, apesar do spoiler.
_____O carinha passa por nós. Noto um adesivo do Lula colado em seu celular. Esse é dos meus, penso. A sargentona convoca-me com seu indefectível “próximo”. Enquanto confere meus documentos, pergunto à moça se o filme está na Netflix. “Não sei”, ela diz.
_____ “Pode votar”, a sargentona ordena. Vou à cabina e, com a convicção de que estou no caminho certo, digito 1 e 3. Sorrio para a foto do meu candidato, tenho a sensação que “tô vendo uma esperança” ali, na tela da urna.
_____Dever cumprido, recolho meus documentos e o comprovante de votação, me despeço (minha vontade era bater continência para a Sargento Megera, mas deixei pra lá: nos tempos atuais, todo cuidado é pouco). Vou para casa, ver um filminho – talvez o tal que a moça me indicou, apesar do spoiler – e aguardar, com o coração na mão e a esperança nas retinas, pela apuração dos votos.
( * ) crônica escrita na tarde de 30/10/2022
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É isto Raphael: também vi a esperança na tela- E ela estava vestida de vermelho.
ResponderExcluirFoi bem isso, esperançar. 13
ResponderExcluirFoi bem isso, esperançar. 13
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