Grãos de areia

“Lá fora, a chuva continua a descer. A terra absorve as gotículas de água, assim como também, outrora, já absorveu os raios de sol.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 



_____Abro a janela da sala. Lá fora, uma fina e tímida chuva desce sobre a cidade cinzenta. Muretas úmidas dividem o espaço com o jardim de poucas flores. A terra pesada é uma tentação para meu tato. Queria poder tocá-la, senti-la, perceber o solo encharcado, entregue à força da água. Prevejo apenas as vidas microscópicas que lá devem habitar. Seres minúsculos, descurados por todos. No entanto, eles vivem, respiram e de alguma forma contribuem para algo.

_____Quanto a mim, não me detenho a saber. Meramente me induzo nessa serenidade absurda de existir. O mundo se divide em criações colossais e ínfimas. Nas miudezas da vida, também podemos encontrar a essência do ser.

_____Isso só depende da forma de como nós abraçamos aquilo que nos convém. Não sou macro nem micro, mas os pequenos seres também executam suas funções. E nós, dotados de tantos erros e desatinos, aceleramos nossas vidas, nossos passos e me pergunto, para quê?

_____Lá fora, a chuva continua a descer. A terra absorve as gotículas de água, assim como também, outrora, já absorveu os raios de sol. Hoje, terra fresca, ontem, terra bruta e seca. Da aridez, vejo brotar amores rústicos e selvagens. Dizem que um dia voltaremos a ser pó. De fato, assim já somos, os vermes que residem no solo experimentarão nossa carne vencida e áspera.

_____Vivemos para nos restar o pouco. Nossa redução terrena se entrelaça nisso. Gigantes agora, pequenos amanhã. A matéria nos acolhe, a terra que tu pisas é a mesma que amanhã deitarás.

_____Sangramos todos os dias e lavamos nossas mãos com a insistência de viver. Terra é vida, força e lugar. Enquanto o finalmente não chega, seguimos na busca da melhor colheita. A ilusão terrena permeia, adubo meu descontentamento, disseminando os grãos de areia, nesse imenso universo.

_____Em cada fôlego nos regeneramos como partículas, átomos e células. Do menor nos fazemos maior. E nessa composição aspiramos por tudo, quando o nada parece ampliar seu significado.

_____A janela da sala ainda permanece aberta. Pingos de chuva batizam as palavras dessa crônica. Elas são mestras imponentes, o início de tudo. Sementes que brotam, no terreno mais fértil que há, o coração.


 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame nasceu em Manaus, em 1983. É graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Amazonas. É autora do livro "Português Amoroso" (Editora Madrepérola/Maio de 2020). Escreve periodicamente contos, crônicas e poesias para os sites: "Revista Vicejar", "Revista Conexão Literatura", "Texto Garagem" e "Corvo Literário".
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