Capítulo pausado ( parte II )

"O que dizer numa hora dessas? Nada. Aprendi com um velho professor: o silêncio é a melhor e a mais segura das respostas." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____A garota levanta, ajeita os cabelos. Pega o celular que até então descansava na espreguiçadeira, começa a fazer selfies. Na piscina, os meninos riem e mexem com ela. Sentado aqui na cadeira, com o celular entre as pernas e o capítulo da novela pausado, também estou mexido. Sem saber, esta Anita afeta meus instintos. E, sem pudor, a espreito, como o tigre espreita a presa na selvagem jângal.

_____Um dos meninos mira, acerta a bola em sua coxa. A garota mostra-lhe o dedo, torna a fazer caras e bocas para a câmera. Ah, a juventude! Desde os tempos de Rita Lee segue transviada, rebelde, transgressora... pelo menos é o que o pai conta, afinal, quando vim ao mundo, a Rita era só uma senhorinha de cabelo laranja.

_____Os ruminantes barulhentos recomeçam a partida na mesa à frente. Pouco me importa: tenho coisas mais interessantes a apreciar.

_____A garota dá as costas à piscina e, consequentemente, a mim. Os meninos sorriem e fazem gestos, acho, estão posando para a foto. Ela, com a inocência própria das garotas em flor, ajeita a calcinha, baixa a alça direita do biquini. Os meninos mantêm os gestos a la surfistas: ainda não atinaram para as sutilezas feminis.

_____ “A foto ficará bonita, pena eu desconhecer o seu @”, penso, enquanto ela eleva o braço à procura do ângulo ideal. “Vai faturar muitas curtidas no Instagram”, concluo, bebericando minha cerveja.

_____Súbito, ela brota à frente. Não a garota, e sim a chata da colega de burocracia. Como uma jamanta desgovernada, tapa toda minha visão edênica. Esbraveja contra não sei quem, gesticula feito uma endemoninhada.      

_____Custa, mas enfim percebe que não estou entendendo nada. Se joga na cadeira, bufando.

_____Infelizmente, a foto foi tirada. O celular voltou à espreguiçadeira, a garota, à piscina. A bola salta de mão em mão.

_____ “Fui lá e acertei as contas com aquele moleque malcriado. Puxei ao meu pai, ah, se puxei... Ele dizia pra nunca levar desaforo pra casa.” Ela retoma a fala, cuspindo palavras e saliva na mesa, acertando em cheio meu copo já pela metade.

_____ “E dizia também que se quem irritasse a gente na rua fosse mais forte, era só a gente passar a mão num pau, numa pedra ou num trem qualquer e sentar na testa dele. Que depois ele se entendia com o pai ou a mãe dele.”

_____ “Você bateu no menino?”, a pergunta me escapole, apressada e espantada.

_____Olho para os lados: antevejo que a diretoria e um grupo de associados possa, a qualquer momento, partir para cima de mim, achando que sou cúmplice ou, pior, marido dela.

_____ “Claro que não. Não sou doida a esse ponto. Mas disse umas poucas e boas. E o desaforado tentou crescer pra cima de mim, falou que ia contar pra mãe. Gritei bem alto, lá no meio da quadra: conta, conta mesmo, porque em você não posso enfiar a mão, mas na bruaca da sua mãe eu posso... Aí mandei meu menino ir brincar com suas crianças lá no parquinho.”

_____Ela narra a façanha como um apresentador de circo: empostando a voz, gesticulando sem parar. Noto: as pessoas das outras mesas nos encaram. Quase todas, porque o grupo de bárbaros segue absorto na partida.

_____O que dizer numa horas dessas? Nada. Aprendi com um velho professor: o silêncio é a melhor e a mais segura das respostas. Dou play no vídeo: a beleza estonteante de Vera Fischer inunda a tela. De relance, olho a colega aqui ao lado, ainda bufando feito um sapo boi. “Deus é um grande brincalhão: numa hora nos presenteia com uma Vera, noutra nos empurra goela abaixo um troço desses”, penso, tentando me concentrar no capítulo.

_____ “O pai xingou tanto a gente naqueles dias...”

_____ “Hein?”, dessa vez, tenho certeza, franzi o cenho.

_____ “Naquela noite que a mãe tombou na estante e a televisão se espatifou no chão, o pai, acho, não deu por conta do estrago. Ele estava tão nervoso que saiu desembestado rua afora, levando a espingarda, jurando acertar as contas. Mas, no outro dia, quando voltou e viu que a televisão não funcionava... ih, ele xingou tanto! Passou dias e dias praguejando. Coitada da mãe, também ouviu muito xingamento.”

_____ “Quero lá saber de televisão quebrada e de pai bebum”, resmungo, aproveitando que os jogadores irrompem numa gritaria sem sentido.

_____Aumento o volume.

_____ “O pai era boa gente, só não podia beber. Quando bebia, ficava valentão. Naquele dia, a gente ficou sabendo depois, ele tinha se desentendido com um cara lá no bar. A Seleção tinha ganhado a Copa, lembra? Era festa e comemoração pra todo lado. E o pai, pelo que contaram pra gente, brigou com um sujeito que não queria pagar o bolão... esse cara tinha apostado contra o Brasil, perdeu, e não queria pagar pro pai e pros outros apostadores. Quem contou isso foi nossa vizinha. Os outros homens não se importaram, deixaram pra lá. Mas o pai, já meio alto com a cachaça, não aceitou, partiu pra cima querendo receber o dinheiro. Deu uma confusão! E foi aí que ele chegou em casa procurando a espingarda pra acertar as contas...”

_____Penso que a televisão deveria investir em novos autores de novelas. Minha colega não perderia nada para Ivani Ribeiro e Glória Perez... Apesar de sua falinha arrastada e sonsa, as histórias que conta têm tragédia, drama, comédia pastelão: ingredientes essenciais a um bom novelão. Como esse que estou tentando assistir desde que cheguei neste clube.

 

Leia também a crônica intitulada "Capítulo pausado" [23.10.2023].


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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