"Quisera ser perfeito e não entendera que conseguira cumprir a sua missão de salvar vidas. Quisera ser perfeito e não compreendera o objetivo dessa missão."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____O cenário era desolador. O dia a
nascer, caiado de nevoeiro e cinza negra, após uma noite de luta aberta contra
o lume das chamas que lavraram a terra e o céu e abafaram as vozes dos homens.
O silêncio, magistral. Só o crepitar fumegante onde antes havia som, luz,
toque.
_____Sentados lado a lado, conseguia
escutar-lhe a respiração a cavar-lhe os segredos acordados sobre o peito.
_____Largos minutos depois, falou. Mãos a
deslizarem-lhe sobre o rosto enrugado. O olhar a morrer-lhe lentamente na
penumbra do cansaço. O mundo inteiro a gritar-lhe dentro da alma.
_____Escolhera a que, segundo o coração um
dia lhe segredara, acreditava ser uma das profissões mais
nobres do mundo.
_____— Pergunto-me se terá valido a pena... –
Voz cadenciada, como quem saboreia uma lentidão amarga – Quando era miúdo,
sabia que o meu futuro seria ter a maior missão que um homem pode ambicionar:
salvar vidas. Sabe, sempre achei que não se tratava apenas de viver a aventura,
mas sim viver aquilo que realmente nós somos. E eu queria ser um herói.
_____— E não é? – Questionei.
_____Sorriu-me. Ou seria um esgar de revolta...
Pensei depois.
_____— Os heróis são perfeitos. Hoje... Hoje,
eu apenas conto todos os fracassos que alcancei. – Sussurrou, a soluçar a dor
contida na garganta – A vida de quantos vi partir? Quantos me ficaram nas mãos?
Quantos matei com um coração que deixou de sentir?... Depois de tantos anos,
percebo que preciso de sonhos para poder viver. A realidade mata.
_____Os heróis são perfeitos...
_____Nessa manhã, foram estas as palavras
que me tocaram.
_____Há pessoas que nunca tiveram que
encarar a morte nos olhos. Nascem, vivem e, num repente, o silêncio adormece-as
sem que nem disso se apercebam. Outras, vislumbram-na dia a dia como se ela
fosse uma carruagem da vida em câmara lenta, cujo fim será sempre cedo demais.
Ele era um desses heróis. Um herói que decidira abraçar uma missão sem ponto
final.
_____Os heróis são perfeitos...
_____Será? Ou será que, tantas vezes, somos
tão somente heróis sem poderes? Ter uma missão talvez seja a missão de todos
nós. Mas, se calhar, nem sempre estaremos certos dos objetivos dessa missão. E,
porventura, será por isso que o fracasso nos dói mais.
_____Aquele homem acreditara sempre que a
sua missão era salvar vidas. Assim, salvar de uma forma perfeita, exemplar.
Contar-me-ia ele depois como recordava tantas vezes, com a agonia a apertar-lhe
o peito, aquela mãe que lhe morrera nas mãos, enquanto tentava salvar-lhe a
vida. A vida dela, naquele momento toda sua, a esvair-se-lhe por entre os
dedos, sem que ele nada conseguisse fazer.
_____Mas acredito que, nesse tempo, nem o
filho que lhe tirara do ventre o fizera perceber o verdadeiro objetivo da sua
missão. Quisera ser perfeito e não entendera que conseguira cumprir a sua
missão de salvar vidas. Quisera ser perfeito e não compreendera o objetivo
dessa missão. Desde que aquela mãe em paragem cardiorrespiratória, entrara
dentro da ambulância e para ela voltara todas as suas forças, o objetivo da sua
missão fora salvar-lhe a vida que tinha dentro dela. Quisera ser perfeito e não
conseguira perceber que a vida acontece quando se aceita um fracasso onde coube
uma grande vitória. E, ainda que a dor da realidade nos mate por dentro, é
necessário seguir em frente, cientes de que muitos objetivos cumpridos compõem
uma grande missão. Porque assim é a vida e não existem heróis perfeitos.
_____Haverá, sim, heróis sem poderes. Heróis
que se desmancham por dentro e por fora para salvar vidas que não são suas. E
que, quando fracassam, se permitem seguir caminho. Porque, por vezes, é apenas
o fracasso que nos concede a conquista de outras vitórias.
_____— Depois de tantos anos percebo, por
fim, que afinal preciso dos meus fracassos para poder viver.
_____Não mais nos cruzamos. Mas desconfio
que depois desse dia, o coração lhe voltou a sonhar...
_
TEXTO: Paula Freire
FACEBOOK: Flor De Lyz - Poesia & Fotografia
Paula Freire é natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras poéticas lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021. É também desta editora o livro de poesia de sua autoria, "Lírio: Flor-de-Lis" (2022). Há alguns anos, descobriu-se no seu ‘amor’ pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, tendo organizado uma exposição com trabalhos seus, na cidade do Porto (a convite da Casa da Beira Alta), em setembro de 2022, sob o título: "Um Outono no Feminino: De Amor e de ser Mulher".
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.
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