Amanheceu

“Largo os pensamentos na janela, desejoso que a passarada, após o festivo banquete, carregue a saudade para longe. Bem longe." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

.Text written in Portuguese - Select a language in TRANSLATE >. 


_____Nuvens, muitas nuvens carregadas para os lados da serra. Assim o dia começa. Mais um dia nessa inexorável jornada ao devir, de que tanto falava Hegel... Deve chover lá para o meio da tarde. Enquanto faço minhas previsões meteorológicas, sanhaços fazem a festa com o pedaço de mamão que alguém deixou no muro da escola.

_____Quando menino, achava curioso ver a chuva descendo a serra. Devagarzinho. Vinha devagarzinho como os trens que sempre chegavam carregados de bauxita. Os primeiros pingos costumavam despencar na minha rua muito depois, quando a serra já se despira da capa branco-acinzentada. Hoje, contudo, quase não dá para avistá-la: encheram a rua, e de um modo geral, a cidade de prédios pavorosos.

_____Largo os pensamentos na janela, desejoso que a passarada, após o festivo banquete, carregue a saudade para longe. Bem longe. Se possível, lá para a serra onde, dizem, a estrada de ferro ainda espera o trem passar com novo carregamento de minério. Papo furado, escutei outro dia de um careca. Que, não satisfeito, emendou: Conversa de gente besta, jamé que o trem volta presses lados. Ele entrou na papelaria do Caputo, continuei esperando minha carona.  

_____Os lençóis e as fronhas amarfanhados dão conta de que não passei bem a noite. Custei a pregar os olhos sonhando que procurava terreno no cemitério. Enquanto zanzava e reclamava comigo mesmo da falta de árvores para sombrear o descanso eterno, uma dona de óculos passou por mim. Caminhava de costas, e sorria. Indaguei-lhe qual o sentido de andar assim. Sem deixar de sorrir, respondeu-me que não se entra no cemitério de frente. Voltei a procurar meu terreninho. Vi gavetas pintadas de azul, uma delas esperando alguém. Deve dar para passar a eternidade aí mesmo, virei-me para dizer à dona. Porém, feito assombração, ela desaparecera. Por onde passou, ficou uma gosma brilhante, tipo rastro de lesma. No ar, morrinha de incenso. Andei mais um pouco, enfim, encontrei: pedregoso e abandonado, sombreado pela capelinha, eis meu terreno. Pelo menos, o sol não me castigará o dia todo, pensei, já resignado com meu devir quando vi, cruzando o portão gradeado, uma professora dos tempos do primário. Cabisbaixa e enlutada, vinha de braços dados com o marido... Estranho, nunca sonhei com cemitério, muito menos com o marido daquela professora que, se não me falha a memória, faleceu quando eu ainda era aluno dela.

_____Afasto as noturnas recordações. Deixo o pijama na poltrona, mando uma banana-prata para o bucho. Visto o short e a camiseta, calço o primeiro tênis que encontro pela frente.  

_____Os sanhaços agora se irmanam com os canarinhos-dourados. Lá no conservatório, as flautas-doces e os gritinhos da meninada anunciam: o ano letivo ainda não findou. Deixo a casca da banana fazendo companhia ao pijama. E, antes que a chuva deságue, saio para desanuviar os pensamentos. 

 

Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
_______________________________________________________________
O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

                                         

Comentários