'Isso não é nada!'

"Apesar de ter ornamentado de maneira especial o ambiente, vez por outra eu voltava o meu olhar na direção do arranjo e vinha à mente aquela desconfortável sentença." 

REVISTA VICEJAR – ARTIGOS E OPINIÕES 

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_____As mulheres gostam muito de receber flores, não é mesmo? Pois bem, há alguns anos, no aniversário de minha esposa, eu fui a uma floricultura, próxima onde moro, para comprar um arranjo de flores para presenteá-la.

_____Chegando lá, me deparei com algumas variedades, nas mais diversas faixas de preço. Os conjuntos mais simples e mais baratos, eram pouco atraentes. Já os mais vistosos eram, evidentemente, os mais caros. Por essa razão, resolvi optar por aqueles intermediários.

_____Quando mostrei à vendedora o arranjo de minha preferência, aproveitei para elogiar o bom gosto, de um modo geral. Foi quando eu ouvi da atendente: “Ah!, isso não é nada!”. E completou: “você precisava ver um outro que a gente vendeu ontem!”.

_____Próximo àquele que eu havia indicado, vi outro, que também foi motivo de eu fazer um registro pela beleza. Novamente a vendedora tornou a comentar: “Isso não é nada!... Hoje cedo, a moça que mora aqui na frente levou um que era maravilhoso!”.

_____Percebi que a intenção dela era destacar a habilidade dos funcionários da loja, proporcionando uma qualidade estética aos produtos mais sofisticados. Porém, entendo que acabava, de certa maneira, por desvalorizar a opção que eu me interessava. Achei estranha e deselegante a maneira de classificar tudo que eu escolhia como sendo “um nada”.

_____Nos outros dois, que também me chamaram a atenção, a fala da vendedora sempre se iniciava com “isso não é nada!...”. Mesmo com a tal observação, acabei optando por um dentre os quatro arranjos que eu havia apontado, que ela acondicionou numa embalagem.

_____Ajeitei cuidadosamente o volume num lugar apropriado do carro e em cada parada durante o trajeto até a minha casa, quando eu olhava para o ramalhete, vinha à minha mente a frase da vendedora. Fiquei com desconfortável sensação de que aquilo que eu havia escolhido para minha esposa “não era nada”.

_____Quando que eu cheguei em casa, fui logo tratando de entregar o mimo. Assim que pegou o presente, ela retribuiu com um largo sorriso, o que demonstrava contentamento e aprovação pelo que havia recebido.

_____As flores foram cuidadosamente arrumadas em um vaso escolhido e durante alguns dias permaneceram ali na sala de estar. Apesar de ter ornamentado de maneira especial o ambiente, vez ou outra eu voltava meu olhar na direção do arranjo e vinha à mente aquela desconfortável sentença: “isso não é nada”.

_____Passados alguns dias e as flores foram perdendo a beleza inicial, até que, após cumprirem seu papel, foram retiradas do recipiente, voltando o cômodo a ter o visual de costume, agora sem as flores ao alcance do olhar.

_____No aniversário da minha esposa do ano seguinte, tornei a comprar flores, só que desta vez numa outra floricultura, dessa vez no centro da cidade. Ao entrar na loja, me detive novamente aos ramalhetes de bom aspecto e valor acessível, para não ser algo muito simplório ou então de valor exorbitante.

_____Embora a vendedora tivesse me mostrado conjunto de flores mais exuberantes, ao perceber que eu estava decidido a levar algo significativo, mas de preço médio, ela sugeriu um maço de flores brancas, bem miúdas, para adicionar ao que eu tinha escolhido, alegando que iriam “valorizar” o arranjo e me custaria apenas poucos reais a mais.

_____Ao ver os “mosquitos”, como ela se referiu àquelas flores pequenas, colocados ao lado das flores coloridas e vendo os demais elementos do conjunto abraçados por um laço elegante, me rendi à criatividade da atendente e levei o conjunto para casa, provocando mais uma vez uma reação positiva à presenteada.

_____Nos dias posteriores, quando eu olhava para as flores acomodadas em um vaso, tinha a sensação de que ele era algo de imenso valor para o ambiente. Curiosamente, eu sentia que o ornamento “valorizava” o cômodo. Por isso, alguns dias depois, quando as flores também se despediram, eu passei a sentir falta de algo ali, para enaltecer aquele espaço.

_____O tempo passou e eu continuo a ver a segunda floricultura, toda vez que passo defronte dela no centro da cidade. Pelo jeito continua a “valorizar” as escolhas feitas pelos clientes. Quanto à primeira, talvez não por acaso, fechou as portas. Não sei se muita gente está sentindo falta. Afinal, “isso não é nada!”, não é mesmo?...


OBSERVAÇÃO: A crônica acima já foi publicada na ‘Revista Vicejar’ em abril/2019. Entretanto, há poucos dias eu presenciei uma situação semelhante, com outra pessoa e em outro estabelecimento comercial, que me remeteu ao texto. Por essa razão, achei por bem postá-lo novamente. 



Paulo Cesar Paschoalini nasceu em 20 de março de 1960 em Piracicaba-SP. É graduado em Licenciatura em Filosofia, escritor de poesias e contos,  com  premiações em Concursos nacionais e internacionais, tendo textos de ambos os gêneros publicados no exterior. Seu livro "Arcos e Frestas" foi selecionado no "3º Concurso Blocos de Poesias" e publicado em 2003. Publicou recentemente o livro de poesias "Mar adento, mundo afora", pelo "Clube de Autores", no ano de 2024. Foi premiado na categoria crônicas em eventos literários e de seus textos foram publicadas no Jornal de  Piracicaba em 2001, 2002 e 2005. É compositor (letrista) de vinte músicas de diversos estilos, em parceria. Seu original de contos, ainda sem título, contém 20 textos desse gênero e aguarda patrocínio para lançamento. 

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