"Na sua viagem entre o palpável e o imensurável, a gaivota sabe que o mundo inteiro é uma canção, e ela, apenas uma nota efêmera, essencial, na melodia do dia."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____Ali estava ela. Estátua viva do instante presente.
_____Ali, no alto do muro, sobre os velhos telhados de musgo e poeira, abraçados ao céu, onde os homens batizam de real o que o vento suspira.
_____E tão poucos reparavam naquela pequena centelha perdida de eternidade!
_____Senti-lhe as asas, silenciosas, impregnadas de liberdade. Escutei-lhe os olhos. Olhos nascidos para a vastidão. Olhos de quem lê um livro escrito com dedos de brisas e murmúrios. Traziam dentro deles vozes inquietas do coração humano, verdades vistas para além da pele das coisas.
_____Avistou mais do que formas ou paisagens. Viu os labirintos secretos que cada um transporta dentro de si. As almas que se movem pelas vielas, os passos apressados dos que carregam o peso invisível da urgência, os sorrisos entrecortados pelos soluços de quem já não sabe o que é repousar.
_____Entre terra e águas, descobriu crianças que riam com a despreocupação que ainda não aprendeu a palavra amanhã. E também o olhar dos velhos, fundo como poços, onde se refletiam memórias de amores perdidos.
_____Um homem vestido de solidão, sentado à janela, a olhar o tempo como quem busca as últimas respostas.
_____A mulher que subia a escadaria e sorriu ao instante que lhe tornou o rosto num campo de girassóis.
_____O amor a dançar em olhares roubados no jardim da praça, e a dor, afiada como um pedaço de vidro, na face de quem segurava um adeus entre os lábios.
_____O rio, dobrado sobre as duas margens, criatura viva a esconder segredos nas suas correntes. Sobre o seu ventre líquido, ancorado ao correr das ondas, um pescador remendava redes transbordantes de ausências. A boca, um poema de confiança indócil, insistia em rasgar as nuvens.
_____A rapariga, junto à ponte, à espera de uma promessa esquecida, acariciava uma pequena flor murcha, com as mãos feitas de sonhos. Pensamentos adormecidos em retornos impossíveis, lágrimas convertidas em versos que eram místicos portais. E transformava a saudade num altar de esperas.
_____Mais além, um menino, riso cor de amanhecer, corria com um barco de papel, a perseguir uma maré que não chegava, e brincava com o futuro como se ele fosse leve, alheio à gravidade que assombra os adultos.
_____E afinal, o que é a existência dos homens, senão esses trémulos voos esquecidos da sua própria leveza? Asas invisíveis que desaprenderam de tanto quando amarraram os pés a chãos inventados!
_____Na sua viagem entre o palpável e o imensurável, a gaivota sabe que o mundo inteiro é uma canção, e ela, apenas uma nota efémera, essencial, na melodia do dia.
_____Porque ali, com a vontade a hesitar entre o chão e o céu, nos olhos a compreensão que só aqueles que se permitem observar podem alcançar, ela contou-nos sobre muito mais do que um horizonte. Falou-nos do homem que carrega o fardo do ontem, mas que segue em frente porque acredita na ventura do destino. Da mulher que transforma a perda em poesia. Da criança que ainda corre livre da profundidade dos medos.
_____Cada um deles a tentar lembrar-se do que é estar realmente vivo. A tentativa que faz o milagre.
_____E com asas que se abriram no abraço perfeito de um gesto que foi quase suspiro, como um reencontro com o amante, ela abandonou o muro para ser novamente parte do céu. Na voz, a essência do que permaneceu, a lembrar-nos que não importa quão profundas sejam as nossas prisões, a esperança está sempre adiante.
_____Tudo o que é preciso é abrir as asas do coração e recordar que fomos feitos para o infinito.
TEXTO: Paula Freire
SITE: Nas Minhas Linhas te Confesso... - Crónicas
Paula Freire é natural de Lourenço Marques, Moçambique, e reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. Prefaciadora e autora das imagens de capa de várias obras no campo poético e narrativo, tem publicado dois livros de poesia, "Lírio: Flor-de-Lis" (Editora Imagens e Publicações, 2022) e "As Dúvidas da Existência: no heteronímia de nós" (em coautoria com Rui Fonseca, Farol Lusitano Editora, 2024). Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, tendo organizado uma exposição com trabalhos seus, na cidade do Porto (a convite da Casa da Beira Alta), em setembro de 2022, sob o título: "Um Outono no Feminino: De Amor e de ser Mulher".
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