"Uma criança corre gritando feito o capeta; outra vem em seu encalço com uma raquete de beach tênis."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____Do telhado, o bem-te-vi lamenta a insanidade que cometeram com os coqueiros e os canteiros. A viuvinha, sempre sozinha, aguarda o momento certo para se aproximar da piscina. O louva-deus, mais audacioso, executa outro rasante.
_____Ajeito a espreguiçadeira; deixo as roupas estendidas no banco — também merecem se refestelar ao sol. Abro meu novo xodó: uma edição de luxo de Etrigan, o demônio, que consegui por uma pechincha no sebo.
_____Antes de terminar o prefácio, noto alguém se aproximando. Para o meu azar, é o Boca-de-Coelho. Puxa! Trinta e nove mil almas nesta cidade detestável e tinha que vir justo ele me atazanar.
_____— E aí?
_____— Bom dia.
_____— Beleza?
_____— Tudo bem?
_____— Começou a melhorar agora há pouco.
_____Marco a página com o dedo.
_____— Não entendi.
_____— Na hora, nem eu. Depois saquei tudo.
_____O sorriso indecente revela os dentes que fazem jus ao apelido.
_____— Hoje foi dia de treinar perna.
_____Meus olhos saltam para seus gambitos. Precisará de muita malhação e muito whey — quiçá nascer de novo — para aparecer algum resultado ali.
_____Ele puxa uma cadeira.
_____A estória promete ser longa, então guardo minha diversão na mochila. Etrigan terá que esperar o Boca-de-Coelho despejar suas lorotas.
_____— Eu tava na flexora, vendo as novidades no celular. Aí notei uma moreninha, sentada na abdutora, que não tirava os olhos das minhas coxas.
_____Como não tenho o menor interesse em olhar suas coxas, observo as senhorinhas da hidroginástica e seus macarrões coloridos. Sob o guarda-sol, o professor as orienta — em vão: as pupilas, tal qual o chato aqui do lado, só querem tagarelar.
_____— Mas hoje tá um calor danado, hein!
_____Será que o Boca-de-Coelho disse isso só para me trazer de volta à sua ladainha de homem cis hétero de meia idade?
_____— Aí botei mais peso no negócio lá. Não é todo dia que tem uma novinha dando mole pra gente, né?
_____Ele larga a camiseta suada sobre a minha.
_____— Meti logo setenta quilos. Costumo puxar quarenta, né. Mas, com aqueles olhinhos pidões grudados em mim...
_____Uma criança corre gritando feito o capeta; outra vem em seu encalço com uma raquete de beach tênis.
_____— Cara, foi um custo levantar aquilo tudo! As pernas tão até bambas.
_____As crianças voltam. Agora são as duas que se esgoelam: a mãe sentou a raquete nelas.
_____— Aí ela foi pra esteira. Eu larguei a flexora e fui fazer abdominal.
_____Levanto para beber água. O Boca-de-Coelho me acompanha:
_____— Cara, que ângulo! Eu ali, deitado no colchonete, vendo as costas dela e aquele short coladinho correndo no meio dos meus joelhos flexionados... Porra, quase quebrei a cervical.
_____A gaitada ecoa pelo corredor. Medonha. Tão medonha que as crianças engolem o choro e, silenciosas como disciplinados cartuxos, o encaram como se tivessem visto o coisa-ruim.
_____— Olhares, igual chumbo trocado, não doem.
_____Mais insuportáveis que as estórias, só os trocadilhos do Boca-de-Coelho.
_____— Ó, é essa boazuda aí.
_____A moça passa por nós como quem passa por duas insignificâncias.
_____— Vou perguntar se não prefere malhar acompanhada.
_____Digo que é namorada de um policial cujos braços invejariam aquele outro personagem do Jack Kirby, ou deixo o Boca-de-Coelho descobrir por si mesmo?
_____Hipnotizado pelo juvenil bamboleio, o falastrão envereda corredor afora. E eu — da mesma maneira que as crianças — guardo o silêncio.
Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras".
O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.



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