Antônio Dasein

“A vida, sendo uma peça, faz do último ato mero capricho para justificar o fechamento das cortinas.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA


Meu nome é Antonio. Mais um plantão... Desses que tudo dá errado. No descanso de um quarto de hora, gosto de deitar no beliche e ler alguns trechos de livros. Não tenho muita pressa, na escala de 24 por 72, é possível ir do céu ao inferno; a paciência é algo conquistado a duras penas.

Chego a passar três meses para ler um clássico ou um romance policial nacional (dos que ainda valem a pena ler). Porém hoje, no meio de frases e da sonolência, uma palavra pulou aos meus olhos: Dasein. Eu pesquisei e parece ser coisa de algum filósofo alemão.

Esse escrito é póst mortem, adianto logo para evitar surpresas. O deslize da literatura atual é deixar para ser compreendido ao final, por um misticismo que consagra mártires em um mero ato. E, quando se morre, a compressão do termo é prévia: uma sequência ilimitada de possibilidades que só se dão em vida. A vida, sendo uma peça, faz do último ato mero capricho para justificar o fechamento das cortinas.

Hoje, pela manhã, tive a sensação de estar sendo seguido. Fim de expediente, saí do complexo policial como sempre: alternando o horário, sondando a rua e conferindo os carros parados próximo ao prédio. Ao descer a ladeira, eu olhava por cima dos ombros a cada dez metros - mecanismos quase automáticos de tira velho.

Tenho também um cronograma de roupas e estilos de barba para cada mês. As combinações servem para me fazer ter sempre uma aparência diferente e usar horários e rotas incomuns. Mas nem tudo é perfeito! De fato, alguém seguia meus passos.

Dois homens passaram numa motocicleta; barulhenta; o tanque não tinha adesivos e o biotipo dos rapazes, se eu tivesse prestado atenção, teria marcado nitidamente por meio lombrosiano. Ocorre que minha esposa, neste momento, me ligava para saber se eu já estava a caminho; ao abaixar a cabeça, eles passaram. Dei conta do perigo, quando ouvi as primeiras marchas reduzidas já voltando ao meu encontro.

Um estampido de tiro me deixou temporariamente surdo. Encolhi os ombros e senti um líquido escorrer pelas costas. Nunca havia tomado um tiro. Já até atirei em gente, contudo, na própria pele, você demora a entender que foi dilacerado. Em movimento de defesa, saquei minha arma como que por instinto animal, em busca de retribuição, de compensação de sangue. A empunhadura forte foi enfraquecendo antes que tivesse meu algoz na massa do meu .40... Mais dois estampidos e uma sensação de impotência amarga.

Morrer é como adormecer, a dor esmorece e um frio interno apaga o calor da adrenalina. Agora eu compreendo. Todos os vetores me conduziam ao Dasein, para aquele "fato sem explicação". Ser policial agrava a existência. É um potencial negro saber, ao menos duas vezes mais que as pessoas comuns, que o seu destino pode flertar com a morte.

Enfim senti a vibração do aparelho telefônico e ACORDEI. Era uma mensagem de aniversário de casamento, enviada por minha esposa. Levantei, coloquei as botas e, prontamente, já me esperavam para um levantamento de homicídio. Aparentemente um pobre coitado havia sido pego na covardia.








 TEXTO: Flaviano Roque 
INSTAGRAM: @cronicas_de_um_armador
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