Buracos e Advogados

“Não existe delegacia sem ratos, de modo que essa frase pode ser entendida nas duas direções.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )


Augusto, o coveiro, agora está sentando numa cela diminuta com mais sete homens ao seu redor... Ambientação com cheiro – ou melhor, ranço de cigarro velho, água correndo pelo chão [certo que, na maior parte das vezes, é mais urina do que água], como se a fonte dos desgraçados não parasse de jorrar nunca. O banheiro já não funciona, porque outro preso tentou subir no vaso para pintar o teto com os restos de sujeira do chão. Enfim, não gosto de prender artistas, esse povo vê coisas que normalmente a polícia não vê.

Uma constatação deve ser averbada: as ratazanas já não dão importância para presença humana. Como o xilindró é mais moldado às necessidades animalescas, são os homens que cedem lugares para os camundongos; e, se escutam um guinchar, logo vão procurando outra posição para tomar leito. Não tem essa de “você é um homem ou um rato (?)”, evidente – responderiam os detentos – “somos todos ratos!”. Não existe delegacia sem ratos, de modo que essa frase pode ser entendida nas duas direções.

O motivo para a detenção de Augusto: uma discussão com sua companheira. Só podia mesmo, um sujeito franzino, miúdo e desnutrido achar de se ajuntar com uma negra forte, alta e com os braços que davam tranquilamente a medida do seu tronco corporal. Bem que diziam que Augusto tinha lá suas manias de grandezas, mas dessa vez passou dos limites. Entre gritos e vias de fato [e eu diria que foram mais vias e fatos em desfavor de Augusto, pois saiu apanhado], foi conduzido pela Polícia Militar para delegacia local.

Sem muito trato ou transparência, levar alguém para delegacia vale como pontuação para folgas do quartel, logo a delegacia fica sempre cheia e qualquer discussão entre vizinhos se torna uma gigantesca operação para paz. O coveiro falou que inicialmente os policiais só pediram para ele acompanhá-los a fim de prestar esclarecimentos; mas depois se deu conta que já estava preso e parcialmente famoso, dado que sua foto de pária já estava estampada no blog local antes mesmo do fim do registro – um trato comum de antecipação de culpa.

Na sua labuta, Augusto havia se acostumado com essa forma fluída – sem muita consideração aos corpos –, pela impressão de que se os defuntos gastaram a vida rápido demais, o problema era deles, seu ofício era cavar. Para um coveiro a antecipação de pena é algo comum, afinal ele põe indivíduos abaixo de sete palmos, como um carrasco sem coração e sem dar tempo para maiores despedidas. Seu trabalho é enterrar histórias!

Até foi se animando um pouco, quando percebeu que, com o tempo, estavam sumindo os detentos... Ficaram seis; depois apenas quatro indivíduos e, por fim, o coveiro estava sozinho. Na solidão, finalmente se deu conta de que não sairia fácil dali. Nenhum motivo especial, apenas por ser uma sexta-feira; para resumir: o juiz viajou, o promotor tirou licença e o restante... Bem, o restante leva os fins de semana bem a sério...

Estando preso, seu inconsciente deseja, mais que tudo, um bom advogado. Lembrou certa fez, quando atrasou no cavamento do buraco de um nobre defunto [deixe-me explicar, para contextualizar, que esse era também um advogado, coisa interessante de se dizer; pois, não sei se concordam, mas raramente morrem; são uma classe de viventes persistentes como nenhuma outra]; naquela ocasião, o coveiro foi repreendido por um causídico enlutado que disse ser amigo do falecido desde os tempos de faculdade.

Emendou logo uma prosa jurídica para cobrar celeridade na confecção da cova, afirmou que até na prisão existia um negócio chamado audiência de custódia, que obrigava a levarem o conduzido, no prazo de até 24 horas, à frente de um Juiz de Direito; e não economizou no rebuscado de Juridiquês tupiniquim: “ –  Data vênia, mas A fortiori, que absurdo! Demorar mais de um dia para enterrar um cadáver. Tem-se mais consideração preso do que morto, como é isso?!”

A repercussão do atraso de uma cova no chão é aparentemente nenhuma; de outro modo, como estar preso é basicamente estar enterrado vivo, Augusto coveiro agora entendia: não se trata do buraco, é sempre o tempo que se leva para fazê-lo ou sair dele. Dessas reviravoltas da vida: antes advogados esperavam seus buracos, agora ele (consternado, enterrado em prantos) esperava por algum bom advogado.








 TEXTO: Flaviano Roque 
INSTAGRAM: @cronicas_de_um_armador
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O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.
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Comentários

  1. Um texto muito bem escrito, cuja narrativa releva uma comparação curiosa envolvendo dois personagens distintos (coveiro e advogado), vinculados por situação inusitada. Parabéns pela habilidade com as palavras e pela riqueza do vocabulário!

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