A companheira

“Aquele momento pertencia a eles, o mundo girava, o tempo iludia os ponteiros.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )



A campainha tocou, abruptamente, ele se levantou da cama. Como sempre, olhou-se no espelho. Viu o semblante fadigado, exibido na barba por fazer. Bocejou, arregalou os olhos, até que em definitivo, abriu a porta. Do outro lado, ela estava lá, e, embora um pouco acanhada, resolveu entrar.

Elegante e lacônica, sentou-se no sofá de almofadas vermelhas. Cruzou as pernas e braços, contraiu os lábios para permitir, que o silêncio dissesse o indizível. Ele, por outro lado, chamou-a para um café. De convite aceito e sentados à mesa, ambos se entreolharam, possuídos pela circunstância presente.

As mãos encolhidas, apenas se soltavam para enlaçar o contorno da xícara. Sorrisos, confissões, após a refeição, ele recolheu o pires sujo e com um pano úmido, aparou os farelos de pão.

Na sala, ela o observava, contemplava seus traços, rugas e dentes. Ele por sua vez, deslizava seus dedos entre as páginas de um livro. Queria ler poesia, mas preferiu abrir a janela e reverenciar a paisagem lá fora. Entre sussurros e vozes remotas, o dia se derretia em seus dedos.

Passou então, a pensar na vida, nos amores passados, na sutileza da existência humana. Não demorou muito e o vento afagou seus cabelos grisalhos. Já contrito, relembrou da infância, da primeira professora, do primeiro beijo. Dos sonhos não realizados e do presente amortecido pela insatisfação.

Entre o ser e o estar, estabeleceu–se a ligação de viver só. Já amuado, decidiu reverter aquela situação. Aproximou-se do rádio e sintonizou numa estação. A melodia lenta e melancólica ecoava nos quatro cantos da casa.

Possuído por sentimentos contraditórios, ele puxou sua companheira contra seu peito e a tirou para dançar. De um lado, para outro, os passos tímidos seguiam. Não havia pressa para o fim. As horas não importavam. Aquele momento pertencia a eles, o mundo girava, o tempo iludia os ponteiros. Em um dado momento, esqueceram-se de tudo, dos erros e obrigações, da morte iminente, das incertezas. O hoje era sonoridade, momento eterno.

Compassados, eles ensaiaram um beijo, mas ela negou sua face, antes que o encontro dos lábios fosse inevitável. De olhos baixos, decidiu que havia chegado o instante de partir. Triste, ele atendeu ao seu pedido. Perguntou, quando a veria outra vez... Ela não o respondeu. E foi assim, que a solidão caminhou até sumir ao virar o corredor.



 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame nasceu em Manaus, em 1983. É graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Amazonas. É cronista do jornal Comunicação Social de Aparecida do Norte. Escreve periodicamente contos, crônicas e poesias para os sites "Recanto das Letras" e "Texto Garagem".
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

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