Como nossos vizinhos

“Mas não escolhemos o vizinho que vai morar à frente ou ao lado; eles aparecem despejam sua mudança, assim como tantas mudanças na vida de todos nós.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )


Escolhemos as vestimentas para uma festa, o vestido ou terno de domingo, os velhos trapos já gastos para deitar preguiçosamente no sofá numa tarde chuvosa; Decidimos o que preparar para o almoço, escolhendo a ementa que nos enche a boca e nos aconchega a barriga.

Dentre tantas outras coisas, prazeres e desejos... Mas não escolhemos o vizinho que vai morar à frente ou ao lado, eles aparecem despejam sua mudança, assim como tantas mudanças na vida de todos nós, serumaninho resmungão e insatisfeito, ora como tempo chuvoso, ora como o brilho do sol reluzente, e por vezes até ventania de um vento sul, é para o lado que nos apetece.

Assim chega-nos também novos vizinhos, senão impor regras, reclamará das já estabelecidas, se gosta de música fará companhia, caso contrário remotamente travará-se uma terceira guerra mundial. Difícil foi entender os vizinhos que naquela época ocuparam a casa da frente, uma senhora muito magricela, sempre com um cigarro de palha, enrolava a longa saia de pano florido entre as pernas e agachava-se do lado de fora do portão a olhar para o fundo da rua.

Não falava com ninguém, até pensei ser muda, mas não! O marido sim era tão gago que a forma mais fácil de dialogar com o pobre homem era acenando a cabeça positivamente a toda conversa, as crianças pequeninas tinham-lhe um medo que fazia da rua, num fim de tarde, um silêncio fúnebre jamais visto.

Plantavam de tudo no quintal, tomates, todo tipo de verduras e legumes; tinham linguiças penduradas em cima do fumeiro do fogão a lenha, potes dos mais variados doces, colchas de retalhos às cores, secavam o café sobre a lona preta na entrada do portão.

Eram nossos vizinhos agricultores, que de mudança, trouxe também o campo para a cidade, era um pedaço de roça de frente a minha janela. E mesmo com todo esse deslumbre, a senhorinha continuava lá com seu cigarro de palha, sem dizer uma palavra ou mesmo um sorriso que fosse.

Certa feita deu-me um pedaço de queijo com doce de abóbora, estendendo a mão, muda como uma porta, aceitei por educação ou medo, já nem me lembro. Noutro dia, algumas frutas e um brinquedo feito de palha, a mesma usada em seu cigarro, chamamos a esse brinquedo de peteca. Perguntei se gostaria de brincarmos as duas para estrear o brinquedo novo?

– Sim! - respondeu em tom tímido e desconfiado. Foi a primeira vez que ouvi sua voz, e passado alguns minutos pude ver seu sorriso em meio a brincadeira, aquilo aconchegou-me a alma, confesso.

Por vezes no abismo mais secreto das coisas e das pessoas, descobrem-se almas que solitariamente perderam-se da vida por alguns instantes, ou por desengano do destino sentiram medo de ser comum e tornaram-se alvo de dúvidas ou crenças desajeitadas de outros. Porque para termos vizinhos, lembramo-nos também que o somos, e que por algum momento somos observados e deixamos nossas boas ou más impressões.

Bem certo que não escolhemos o vizinho que vai morar à frente ou ao lado, mas de alguma forma eles nos escolhem ao mudar-se para lá, mas certo que nunca vale a pena trancar-se por detrás de um portão de achismos e preconceitos e nem tampouco cobrir-se secretamente... O melhor é descobrir-se uns aos outros e aceitar o queijo e o doce de abóbora, e em troca quem sabe não lhe ajudar a enrolar alguns cigarros de palha, e sentar-se ao seu lado ao portão a observar a rua.

Sejam quais forem ou como forem... Não há nada que nos tragam tantas lembranças como nossos vizinhos!








 TEXTO: Flaviane Borges  
FACEBOOK: Depois-daqueles-dias 
Flaviane Borges Gomes, nascida aos 25 de setembro de 1981, em Dom Cavati, interior de Minas Gerais. Completou seus estudos na Escola Estadual Profa. Ilma de Lana Emerik Caldeira, em 1999. Despertou gosto pela escrita desde muito cedo, embora tenha um vasto material escrito, dentre poesias, frases filosóficas, textos e afins, o que fez por amor à escrita em seus momentos sós. Participou da Antologia "Arte em Poesia", pela Editora Sol. É autora da "Página depois daqueles dias", que leva o nome do seu primeiro livro a ser publicado em breve. Hoje luso-brasileira, reside em Portugal, onde continua sua jornada no mundo da escrita.
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

Comentários

  1. Que lindo, fiquei emocionada imaginando cada momento descrito. Que Deus abençoe você.

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  2. Parabéns , lindo dmais ao ler vem logo a imaginação de tudo... que vc continuem a nós alegrar cm suas belíssimas escritas ....❤❤❤

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