Linhas tortas

“Ainda há vida aqui dentro. O mundo continua a girar e a chuva é um véu que cobre nosso desalento.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )


 

_____Sento a caneta sobre o papel em branco. Deixo a cadeira e sigo em direção ao parapeito úmido da janela. Lá fora, uma tímida chuva ameniza as dores. Nesta cidade, há corações incendiados pela perda.

_____Inspiro um pouco, olho ao meu redor e na minúscula sala que me acolhe, as paredes estão nuas. Numa prateleira, o calendário disputa com os livros empoeirados, a minha atenção.

_____O ano novo chegou, ele está aqui. Mas ainda me sinto emaranhada nas teias venenosas e ensebadas de 2020. O que de fato aprendemos? O que de fato concluímos? Corro meus dedos, entre as lombadas dos livros, tento esquivar meus pensamentos hostis. Ainda há vida aqui dentro. O mundo continua a girar e a chuva é um véu que cobre nosso desalento.

_____Gritamos por aqueles que se foram. Quem poderia entender as razões que nos cercam? Nossas perguntas precisariam de respostas? Volto ao encontro da folha em branco. As linhas retas seguem vazias, permanecem em silêncio. Respeitam o luto, que foi a herança deixada para nós. Luto por um mundo! Interprete leitor, a palavra luto, na amplitude de significados.

_____A dizer sobre isso, tento ressignificar a vida, meus sentimentos tortos, minhas convicções, meus amores secretos e meus poemas não escritos. Traduzo sonhos, alivio agruras. O livro da vida, aqui se revolta, para voar e pousar em solo de paz.

_____Na terra dos homens, o egoísmo é aplaudido e com você leitor, preciso compartilhar essas palavras. Ah, palavras! São elas os tiros da alma.

_____Entre as horas que passeiam sobre mim, o tic-tac já não me acossa. E o cricrilar dos grilos não me atormenta os ouvidos. Diante do meu corpo franzino, o papel, levanto meus olhos já fadigados e as retinas me pedem descanso. Longinquamente, ruídos televisivos tagarelam aquilo, que não queremos escutar.

_____Na solidão que me aguarda, tento fechar a janela. Mas antes de me despedir da noite, deparo-me com um gato, do outro lado do muro. Ele me olha, como se quisesse me hipnotizar, emblemático, aperta seus dois olhinhos cintilantes. Por um momento, sorrio, tento chamá-lo, estralando meus dedos. No entanto, é tarde demais, uma buzina ressoante o assusta. E o felino de cor caramelo deixa com um salto, o muro pichado. Atônita, acompanho sua sombra, até vê-la desaparecer de vez, no telhado vizinho.


 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame nasceu em Manaus, em 1983. É graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Amazonas. É autora do livro "Português Amoroso" (Editora Madrepérola/Maio de 2020). Escreve periodicamente contos, crônicas e poesias para os sites: "Revista Vicejar", "Revista Conexão Literatura", "Texto Garagem" e "Corvo Literário".
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

               
                                    

Comentários

  1. Puxa, que texto! Toca fundo porque fala das mesmas inquietudes que 2020 trouxe para mim. Aliás, acho que trouxe para todos nós. Lendo essa crônica lembrei de Uma casa na escuridão, romance emocionante de José Luís Peixoto.

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  2. No romance que citei, o autor fala das angustias e inquietudes de um escritor diante de novos e perigosos tempos.

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  3. Querido, Raphael !
    É sempre uma alegria contar com sua leitura.
    Abraços poéticos!

    Mayanna Velame

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