É terrível

“Sala cheia, falatório intenso, parece estádio de futebol em final de campeonato. Vozes de taquara rachada, gritinhos, risinhos, piadinhas bestas típicas de ensino médio.”

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )


 

_____As ruas, desertas, como todo domingo; alguns habitués nos copos-sujos da vida, poucas senhoras às janelas (parece-me, rareiam as senhoras que janelam: talvez seja o frio, talvez ainda medo do vírus, vai ver foram também arrastadas pela avalanche dos smartphones e whatsapp). Vesti o moletom, "saí pela cidade, me sentindo um jovenzinho" como o Rei cantou naquela canção, fui assistir Thor: Amor e Trovão.

_____Na bilheteria, um cabeludo imberbe quer pagar meia: esqueci a carteirinha, tô na facul. A moça, certamente cansada de ouvir estórias parecidas, sai da cabine, vai conversar com o careca emburrado que recolhe os ingressos. O rapazola tira o celular do bolso, os dedos nervosos correm pela tela. A porta range, a moça vende a meia-entrada. Ele sai, rindo, como se tivesse adquirido o ingresso para o Valhala. Próximo.

_____Inteira, peço. Risinhos atrás de mim. De esguelha, vejo três mocinhas elegantes: cobra, jacaré, elefante... perdão, leitor, não resisto ao chiste. Levam  as mãos aos cabelos tingidos em vários tons, ajeitam as madeixas e, como bobas alegres, não param de rir. Pago, saio apressado, me esqueço de comprar as pipocas.

_____O careca emburrado não responde ao meu boa tarde, recolhe o ingresso, exige o RG de alguém atrás de mim. Subo com dificuldade os degraus: ou está escuro demais ou são esses óculos novos, resmungo, agarrando-me ao corrimão.

_____Sala cheia, falatório intenso, parece estádio de futebol em final de campeonato. Vozes de taquara rachada, gritinhos, risinhos, piadinhas bestas típicas de ensino médio. Imagino rostos cheios de espinhas, alguns mal barbeados, bocas nervosas mascando chicletes, olhares cobiçosos em cima das meninas que, desenvoltas, sobem pela escada onde quase tropecei... troco de fila.

_____Entram outras meninas; um garoto desengonçado, de óculos e franja lembra a foto que tirei na formatura da oitava série. Um sujeito corpulento adentra a sala de mão dada com uma criança - felizmente, não sou o único coroa presente, penso. Uma mulher de trinta e poucos, com um balde de pipocas suficiente para alimentar a fome de Asgard, senta-se duas poltronas à minha frente.

_____Os trailers colorem a tela, a molecada não faz silêncio. Um grupinho para ao meu lado; a loirinha diz: aqui não dá, véi, a gente somos quatro e só cabe três aqui. A frase aferroa minh’alma. O carinha de jaqueta cutuca o garoto que traz HELLFFIRE CLUB estampado na camiseta: pede pro moço arredar pra outra poltrona, aí cabe todo mundo. Finjo prestar atenção aos trailers. Pelo menos, não me chamou de tio ou senhor: estes epítetos pesam-me tanto...

_____O grupinho parlamenta, a loirinha decide: vocês dois sentam aí, eu e Simoninha sentamos atrás. Oh, Odin, como odeio nomes no diminutivo! Os moleques se jogam nas poltronas, abrem latas de coca e embalagens de Cheetos... o garoto da camiseta do inferno se esparrama, rela o braço no meu moletom. 

_____Se você vai ficar no celular, pra quê que veio então, a loirinha indaga. Simoninha, sem desligar o aparelho, quer saber quanto tempo dura o filme. A merda da luzinha começa a me incomodar... Papai, quero ir no banheiro. O sujeito passa à minha frente, a criança tropeça no meu tênis, me mostra a língua. Os adolescentes riem. A cena na tela é trágica, então, só podem estar rindo de mim, concluo.

_____O filme prossegue, ainda não entendi do quê morreu a menina, ou se morreu mesmo: o homem passou com a pestinha na hora, não pude ver direito a cena... Thor é presenteado com um par de bodes que gritam sem parar, parecem histéricos. Presente de grego. Sinceramente, não sei o que é pior: os bodes ou a loirinha aqui atrás que dá gaitadas toda vez que os bichos gritam... Em horas assim, anseio pelo Ragnarok.

_____Agora, Thor desafia Zeus (o roteiro mistura todas as mitologias, Jesus). Em fúria, o onipotente olimpiano despe as vestes do asgardiano. Thor, nuinho em pelo, arranca suspiros de alguém duas poltronas à frente. Aqui atrás, Simoninha quer saber: vai mostrar de frente. E pensar que ainda a pouco não se interessara pelo filme... Safadinha, essa Simoninha. Os deuses discutem, se enfrentam. Uma personagem é ferida pelas costas, alguém lá no fundão grita: filho da puta. Os adolescentes ao meu lado riem. 

_____A aventura caminha para o fim, o homem e a criança passam de novo. É a quarta vez e, pela quarta vez, ela bota a língua pra fora: deve ser piriri. Bem feito.

_____O filme cumpre seu papel, entretém: cenas ágeis e divertidas, o eterno embate entre o mal e o bem rende boas sequências; no final, o herói vence, embora não possa viver seu grande amor.

_____Saio do cinema com uma certeza: fiquei velho. Velho e impaciente. Senti o mesmo, há uns anos, quando assisti à derradeira sequência de Os Vingadores. O cinema, lotado de crianças e adolescentes que não calavam a boca; dei o azar de sentar ao lado de um nerd idiota que ficou o tempo todo comparando o filme às HQs para impressionar as moças que estavam ao seu lado. Realmente, meu negócio é assistir filme em casa. 

_____Encontro Hermenegildo sentado na calçada, ouvindo o jogo pelo rádio. Relato-lhe o acontecido. Como o Mestre Ancião, mira a rua vazia, uma pipa presa nos fios da rede elétrica, sentencia: o tempo passa, a gente envelhece, e isso é terrível. O locutor grita gol. Hermenegildo, do alto de seus quase cinquenta anos, sorri. Deve saber o que diz, penso. E isso é terrível.


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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