No fim do mundo

“O silêncio nas ruas me incomoda. Estou numa daquelas cidades mortas descritas por Monteiro Lobato? Janelas me espreitam, sinto como se estivesse exposto num zoológico.” 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Conto ) 



_____Ando, ando... parece que esta estrada, assim como a poeira, não têm fim. Misericórdia! O sol judia do meu cocuruto, minha garganta clama água, água, água... as garrafas na mochila, mais secas que o solo do sertão. Contudo, sem sinal de internet e com a bateria do celular indo pras cucuias, só me resta seguir adiante, tentar encontrar ajuda na cidade que aquele velho falou... como é mesmo o nome dela? sei lá, esqueci. Mas daquele velho fedido jamais esquecerei: credo, nunca senti um cheiro tão nauseabundo. E aquela barba desgrenhada cobrindo-lhe os farrapos, o cabelo duro e encardido feito um ouriço, o olhar vidrado... Misericórdia!

_____Maldita hora que dei trela àquele matusalém. A necessidade de chegar a algum lugar obnubilou minha razão, só pode. Um sujeito ponderado como eu devia ter desconfiado quando ele apontou o dedo encardido pro horizonte e tartamudeou: Perpétua fica ali, depois da curva. Taí o nome do buraco: Perpétua. Acreditei, ainda lhe agradeci, oh como fui imbecil! Deve ser efeito desse sol escaldante... pensando bem, eu estava entre a cruz e a caldeirinha: acreditava no velho ou esperava (até quando?) outra pessoa passar e quiçá me ajudar com o carro. Tanto lugar praquela bosta pifar, e pifa nesse cafundó.

_____Segui na direção apontada crente que na tal Perpétua haveria uma oficina mecânica. Agora estou aqui: há horas a curva ficou pra trás, já subi e desci morro, ando, ando, não chego a lugar algum. Ou aquele velho esquisito me fez de besta, ou é um típico mineiro para quem todo lugar “fica ali”.

_____Meu estômago ronca mais que trovão, meus pés exigem descanso. Já arranquei a camisa empapada de suor, já troquei a calça por este short que, felizmente, estava na mochila e, no entanto, nada afasta a sensação de que atravesso o Saara. Misericórdia! Se um ovo cair na minha testa é bem capaz de fritar na hora. Diacho, sequer uma árvore para sombrear essa desgraça de estrada... e a bosta desse vento só faz soprar poeira e quentura.

_____Perpétua... será que esse buraco existe mesmo? Começo a achar que o matusalém estava de pilhéria comigo. Pilhéria, falo como o herói do romance que li noutro dia...  será insolação? Misericórdia.

_____Ando, ando, não encontro nada. Nem Judas quis perder as botas nestas plagas. Mas voltar não vai resolver, então, avante.

_____BEM-VINDOS A PERPÉTUA. Uma placa: a civilização dá sinais, enfim. Ando mais um pouco, posso avistar, entre o mato seco, alguns telhados e paredes caiadas. Cães ladram, porcos guincham, urubus sobrevoam o pasto, anus crocitam nos mourões... não é propriamente a civilização.

_____Sentada na linha férrea, a menina de maria-chiquinha brinca com uma galinha feia como a morte. Pergunto onde há um bar ou restaurante (antes de procurar o mecânico, preciso me hidratar e alimentar). A menina me olha de um jeito aparvalhado. A galinha aproveita a oportunidade, escapole de suas mãos, se esconde numa moita de bambu. On-de pos-so co-mer? Ela lambe o ranho, aponta um conjunto de casas. Ali, balbucia.

_____Apresso o passo, como quem vê um oásis logo ali... súbito, me lembro do velho. Que o sol e a poeira levem-no para o quinto dos infernos, se é que já não estamos nele.

_____O silêncio nas ruas me incomoda. Estou numa daquelas cidades mortas descritas por Monteiro Lobato? Janelas me espreitam, sinto como se estivesse exposto num zoológico. Longe, um asno zurra.

_____Deve ser aqui. O lugar parece uma taverna digna das páginas de Álvares de Azevedo. O barbudo com um palito de dente na boca espanta moscas com o pano encardido, responde ao meu cumprimento com um muxoxo. Peço água bem gelada, ele aponta a mesa; sento no tamborete manco, ponho a mochila no chão. Afora o ruído do freezer enferrujado e o zumbido das moscas, não se ouve nada mais. Lugarzinho bom pra morrer, penso.

_____Enojado, o sujeito larga a garrafa e o copo na mesa. Realmente, estou nojento: corpo, pelos e cabelos encharcados de suor; peito, rosto, ombros tostados de sol; short, meias e tênis amarronzados de tanta poeira... tenho poeira entranhada até n’alma, misericórdia! Fosse eu o dono da espelunca, recusava atendimento a qualquer um que entrasse aqui desse jeito. 

_____Há banheiro aqui ou um lugar onde eu possa, pelo menos, lavar o rosto, pergunto. O homem cospe o palito no chão, me manda esperar “porque o menino tá cagando lá”. Tomo a água, desisto de ir “lá”. Onde posso encontrar uma oficina mecânica? Irônico como o narrador machadiano, ele sorri: hoje é feriado. Droga, resmungo.

_____Vai comer também, ele joga a pergunta à mesa. Assinto com a cabeça. O homem empertiga-se, anuncia os pratos do dia: carne de cavalo xucro com feijão de corda e lula regada à pinga com chuchu. Misericórdia!

_____Zum zum zum a mosca voeja diante do meu nariz. O homem coça a barba. Noto também enfado em seus olhos. Talvez para agradar – devo ser o único freguês do dia – me oferece, a título de sobremesa, pão com leite condensado. De cortesia, frisa.

_____Considerando que a fome é o melhor tempero, fico com o primeiro prato: se a carne for intragável, devoro o feijão que, como diz o outro, dá sustança. O taverneiro se arrasta até o balcão, onde um moleque zarolho me encara. Deve ser o cagão.

_____Mulheres de véu e missal passam na calçada; fitam-me, cochicham, persignam-se. Uma moça em torno dos dezesseis anos me devora com o olhar agateado. A velhota enlutada lhe dá um safanão, puxa-a pelo braço. O tempo parou mesmo por aqui, misericórdia.

_____O prato chega rápido: pronto desde ontem, só pode. Ó, mandei o moleque ir atrás do mecânico, torce pra ele não ter ido pescar ou estar escornado por aí, o barbudo comenta. A carne não está de todo ruim.

_____Sinos bimbalham. Mais pessoas cruzam a rua, me encaram como se eu fosse um demônio bexiguento.

_____Tem cerveja, pergunto. O homem sorri, traz um casco tinindo de gelado; sem cerimônia, se serve também. Estala a língua, pede: conta o assucedido. Súbito, o moleque entra, me interrompe: o moço já ê vêm. Enfim, parece que o azar parou de bafejar na minha nuca. Meu companheiro de copo afasta as moscas que voejam sobre a comida. Me oferece outra cervejinha e, num salto, vai à geladeira.

_____A voz fanhosa do padre desce a escadaria. A ladainha, em latim. Miserere Domini, resmungo. O moleque arregala os olhos, corre em disparada para o banheiro: deve imaginar que sou o diabo que veio visitar este rincão esquecido do seu reino. Misericórdia.


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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