A carona

"Quando enveredávamos pela avenida, o toró despencou. As trovoadas competiam com a barulhada das buzinas de criaturas tão ou mais impacientes que Caçulinha." 


REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 



_____Saímos da repartição quando o vento, de tão furioso, parecia querer arrancar os cambucis e os ipês das calçadas. Caçulinha entrou no carro resmungando da chuva que se avizinhava. 

_____– Se faz sol, você reclama; se chove, reclama também... tá difícil, hein! 

_____Tentei dar à voz um tom mais leve, afinal, Caçulinha tem o estopim curto, e eu não podia arriscar perder a carona. Ele me ignorou, mais preocupado com o Corolla estacionado à frente: 

_____– Olha como pararam a porra desse carro. Deve ser mulher que tava dirigindo, só pode. 

_____Minha vez de ignorá-lo, decidi, correndo os olhos pelas mensagens que pipocavam no celular. No geral, memes e fake news que os tiozões do WhatAspp espalham ao longo do dia. “Por essas e outras que não deixo os dados móveis ligados o tempo inteiro”, resmunguei, desligando o celular. 

_____Caçulinha saiu da vaga sem precisar muita manobra. “Reclama demais, o carro nem tava tão mal estacionado assim”, tencionei dizer, porém preferi ficar quieto. 

_____Quando enveredávamos pela avenida, o toró despencou. As trovoadas competiam com a barulhada das buzinas de criaturas tão ou mais impacientes que Caçulinha. 

_____– Toda vez que chove é esse inferno, puta que pariu. E seu prefeito não toma providência nenhuma. 

_____– Meu prefeito uma ova. Não votei nele, redargui, limpando o vidro embaçado com a mão. 

_____– Seu, sim. Você votou nulo, então, ajudou a eleger aquele bosta. 

_____Para não travar mais um bate-boca político que nos levaria à nada, tornei a tirar o celular do bolso. 

_____– Previsão de tempestade pro fim de semana todo, comentei, a fim de quebrar o silêncio. 

_____– Merda, era tudo que eu precisava. Vou ter que remarcar minha viagem. Bem que avisei pra mulher: não reserva a pousada, tá chovendo demais. Mas aquilo é teimosa feito uma mula. Não só reservou a hospedagem, como pagou antecipado. Agora, ela vai passar o fim de semana inteiro falando até babar... Você ri porque não tem mulher pra te infernizar. 

_____– Tô rindo é desse povo da internet: não perdoa nada. Já tão fazendo piada com o nome do filho do Seu Jorge... você viu que ele registrou o menino como Samba? Não viu, não? De início o tabelião não queria registrar. Não sei se teve processo, só sei que o menino acabou sendo registrado. Agora tão debochando na internet, dizendo que, se a moda pega, daqui a pouco vai ter criança chamando Pagode, Funk, Axé... 

_____– Fosse eu o tabelião, também não registrava. Gente tem que ter nome de gente, ora! 

_____Olhei-o de esguelha; por um instante, tencionei comentar que Walkylandher, sim, é um nome perfeito para uma pessoa. Porém, mais uma vez, segurei a língua: o infeliz do Caçulinha sofre desde os tempos da escola. Eu sei, afinal, eu era um dos vários meninos que debochavam, todo santo dia, do nome dele na hora da chamada. 

_____– Te contei que fecharam aquela boate da entrada da cidade? Se bem que boate é eufemismo, né, porque lá rolava de tudo, inclusive prostituição de menor e tráfico de droga. Me falaram que o Ministério Público mandou fechar. 

_____– E eu ri da crente... Caçulinha comentou, tamborilando os dedos no volante. 

_____Sem entender patavina, fitei-o. Aproveitando que o trânsito parara de vez, puxou o freio de mão, me encarou e disse: 

_____– Cara, outro dia dei carona pra uma dona. Tava armando um chuvão, e essa dona tava em pé lá no trevo. Pensei comigo: não custa dar carona. Encostei o carro, baixei o vidro, perguntei se queria vir comigo pro centro. Meio ressabiada, ela espiou o carro todo. Me encarou, deve ter concluído que eu tenho cara de gente boa, aceitou. Mal abriu a porta e eu entendi que era crente. Porque, além da roupa e do cabelo preso num coque, entrou falando que “o Senhor me colocou no caminho dela, que ela estava orando pro ônibus chegar logo, que Jesus é misericordioso e intercedeu...” Sentou e desembestou a desfiar essa ladainha. E você sabe que não suporto esse papo-furado de igreja e bíblia, né... Se ninguém anda por aí apregoando que leu o Jorge Amado, o Saramago, o Hugo Mãe, por que então falar que leu o capítulo tal ou o versículo tal da Bíblia? Não dei trela. Então a dona ligou o desconfiômetro e fechou a matraca; ficou de cabeça baixa, vai ver tava orando. Aí, quando passamos em frente a essa boate que você falou, ela levantou a cabeça, aprumou o corpo e falou assim: “tenho fé que hão de fechar este antro”. Não aguentei, cara, e desandei a rir. A dona fechou a carantonha e, dedo em riste, gritou “o Mal não há de triunfar, o Jesus é mais!”. Aumentei o volume do rádio, ela aquietou. Mas, antes, resmungou “muito em breve aquele antro há de fechar. Oro todo dia pra isso”. 

_____Outra trovoada. A chuva parecia aumentar. Mais buzinas se impacientaram. 

_____– Agora você vem me falar que a boate fechou... porra, a reza da dona foi forte mesmo! 

_____– E, você, homem de pouca fé, duvidou. E ainda riu. 

_____O trânsito tornou a parar. Dessa vez, Caçulinha não reclamou. Cofiando o cavanhaque, acompanhava com o olhar perdido os limpadores do para-brisa. 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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