O pão da Xuxa

"Várias noites eu perdi o sono imaginando uma menininha, quase que da minha idade, chorando de fome e morrendo nos braços do médico pedindo pão..." 


REVISTA VICEJAR – LITERATURA 



_____— O pai não me deixava assistir o programa da Xuxa.

_____— Por quê?

_____— Ah, ele dizia que não achava certo a Xuxa mostrar aquela mesa farta de café da manhã... Eu não sei se você lembra, mas todo dia o programa começava com a Xuxa comendo pão, geleia, bolo, suco, frutas, queijo, presunto, leite, e não sei mais o quê.

_____— Lembro, lembro, sim. Dava água na boca, até em mim que nunca fui de comer logo que acordava. Mas não entendi a implicância do seu pai.

_____— Não era só implicância, era raiva mesmo. Ele dizia que não achava certo a televisão mostrar tanta comida, ainda mais num programa para criança, com tanta gente passando fome no país. Pro pai, as crianças viam aquela comida toda e sofriam, isso quando não ficavam revoltadas.

_____— Mas naquela época televisão era caro. Lembro que lá em casa tinha uma de quatorze polegadas que foi comprada de segunda mão. Quem passava fome não via televisão, eu acho.

_____— Não sei. Só sei que o pai odiava a Xuxa. Dizia que se pegasse meus irmãos e eu assistindo ao programa dela, dava uma surra na gente. Dizia e apontava pra trás da porta, onde ficava pendurado um chicotinho de couro.

_____— Lá em casa não batiam na gente.

_____— Sorte de vocês. Porque lá em casa, por qualquer coisinha, era uma coça. Meus irmãos apanharam mais, sabe como é, menino é sempre mais levado.

_____— Mas, voltando à história da Xuxa... ela não marcou a sua infância, como marcou a minha e a de muitos da nossa geração?

_____— Ah, marcou sim. Porque aonde a gente ia via produtos com o nome dela e ouvia as músicas dela, né. Mas de jeito nenhum podia assistir lá em casa. O pai contava que uma menina de uns cinco anos morreu de fome não sei onde, que o jornal tinha mostrado isso. E que, antes da menininha fechar os olhos, pediu pro médico que lhe desse o pão da Xuxa.

_____— Meio dramático isso, não?

_____— É. Mas pra mim, que tinha uns seis anos naquela época, ouvir isso do meu pai me dava arrepios. Várias noites eu perdi o sono imaginando uma menininha, quase da minha idade, chorando de fome e morrendo nos braços do médico pedindo pão... Sabe, tem coisas que não se diz pra uma criança.

_____— Mas vocês passavam necessidade?

_____— Não. O pai trabalhava no BEMGE naquele tempo. Na verdade, trabalhou lá até o banco fechar, na época que o governo deu pra privatizar tudo, lembra... A gente não era rico, mas nunca faltou nada. Quer dizer, faltou lá em casa mais carinho, pelo menos da parte do pai. E, claro, faltou os discos da Xuxa, que eu só ouvia nos aniversários das minhas amiguinhas, faltou a mochila e a merendeira dela que um monte de criança levava pra escola e eu nunca tive. Enfim, os produtos que levavam o nome dela, e que todo mundo tinha, isso eu não pude ter. Não era pelo preço, entende, mas pelo ódio que o pai tinha da Xuxa.

_____— A gente paga pelos transtornos e manias dos nossos pais... Novela, então, ele não via, né? Porque só mostrava carrão, mansão, gente rica esbanjando e vivendo no luxo. Nem parecia que viviam no mesmo país que a gente.

_____— Toda noite, quando terminava o jornal, ele ia jogar baralho no vizinho. Saía resmungando que novela era putaria e alienação, mas deixava a gente ver. Ele saía, a mãe vinha da cozinha com a cestinha de costura; ela sempre tinha um botão pra pregar ou uma camisa precisando de um ponto... Eu ficava deitada no tapete junto com meus irmãos. Muitas vezes adormecia ali mesmo e sentia as mãos da mãe me botando no colo e levando pra cama. Engraçado, a gente podia ver tudo na televisão, o pai só implicava mesmo com a Xuxa. E com o pão da Xuxa.

_____— Vai entender, né. Então você não teve a boneca? Lembro que era o sonho de toda menina naquela época. Eu não entendia como gostavam daquela boneca desmilinguida que parecia um cabo de vassoura.

_____— Não tive. Não tô te falando que nada que tivesse a marca da Xuxa entrava lá em casa? Chiclete, sabonete... Teve um tempo que o pai proibiu a mãe de comprar um suco, agora não vou lembrar o nome dele, só porque a Xuxa era a garota propaganda.

_____— Credo, parece obsessão.

_____— Aí um dia aconteceu uma coisa... Acho que nunca contei isso pra ninguém; só pra mãe, na época, mas ela me mandou esquecer e ainda zangou comigo.

_____— O quê aconteceu?

_____— Um dia o pai foi transferido pra outra cidade. Ele chegou em casa, deu a notícia, falou que a transferência era só pra cobrir a licença de não-sei-quem, que a vida na outra cidade era muito cara... Passou a vir só nos finais de semana. Chegava no Passat branco, levava a gente pra tomar sorvete, comer pipoca... O pai tinha umas esquisitices, era bravo mas, quando dava na veneta, tratava a gente bem.

_____— São todos iguais, muda só o endereço.

_____— Pois é. Nessas ausências dele, não sei por que, eu comecei a mexer nas coisas que ele guardava no quartinho dos fundos. Quartinho da bagunça, sabe, onde só ficava “traste velho e empoeirado”, como a mãe dizia. Eu ficava futricando lá e um dia achei uma revista sem capa. Virei as páginas e vi a Xuxa pelada.

_____— Essa revista é famosa até hoje. Tem colecionador que paga um bom preço por ela.

_____— Não entendo disso. Só sei que, na hora em que vi aquilo, eu fiquei com uma raiva do meu pai! Eu não podia ter o caderno, as revistinhas, a boneca, nem chupar o chiclete da Xuxa eu podia, mas ele guardava aquela revista ensebada... Contei pra mãe, ela disse que “isso é coisa de homem, que eles precisam disso, e você é muito criança pra entender”. Tive raiva, nojo, sei lá mais o quê que eu tive do pai. Foi aí que descobri que o mundo é hipócrita. E confirmei isso quando, no sábado em que o pai não apareceu, a mãe reuniu chamou meus irmãos e eu pra comunicar que o pai “tinha arranjado outra família lá onde ele trabalha e, daqui pra frente, vem visitar vocês de forma mais espaçada”.

_____O ônibus chegou, ela se despediu. Embarcou junto com meia dúzia de gatos pingados e eu continuei a esperar meu ônibus. 
 

Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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