Outra tarde burocrática

"Eu recordava minha rua, meus vizinhos, os amigos de infância enquanto, nos fones, 'A mais bonita das noites' chegava ao fim."


REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 




_____Voltou da cantina pouco depois do meio-dia. Trouxe a necessaire aberta, uma garrafa de chá pela metade, duas sacolas plásticas cujo conteúdo não identifiquei, e a chave.

_____– Lavei essa chave com álcool. Ela é um vetor pro vírus, sabe.

Ninguém comentou nada. Ela repetiu, e completou:

_____– Todo mundo passa a mão nessa chave. A gente tem que se precaver, sempre.

_____Nos meus fones, Chitãozinho e Xororó me faziam recordar outros tempos, tempos de minha mocidade... ah, velhos e queridos tempos quando eu não precisava conviver com a loucura do mundo, a paranoia de certos burocratas, com gente tacanha feito a Saturnina... Também, cá pra nós, o que se pode esperar de uma criatura chamada Saturnina.

_____Nos meus saudosos tempos de menino, conheci uma Marciana. Vivia sentada à porta de casa, a balançar o leque de papelão, falando de todo mundo que subia ou descia o morro. Na vizinhança, era tida como “futriqueira, olho-ruim e mal-amada”; para nós, moleques que corríamos, jogávamos queimada e batíamos o pique, ela era só uma dona gorda que vivia implicando com nossas brincadeiras. Se eu soubesse que no futuro ia ter que conviver com um tipo como Saturnina, jamais teria debochado da velha Marciana...

_____Saturnina espalhava os objetos pela mesa, procurando não sei o quê na necessaire. Eu recordava minha rua, meus vizinhos, os amigos de infância enquanto, nos fones, “A mais bonita das noites” chegava ao fim.

­_____– O mundo está doente e cabe a nós, os que têm noção disso, tomar todos os cuidados pra evitar que vírus e doenças se espalhem.

_____Saturnina falava para ninguém em especial. Notei que a estagiária à minha frente sorriu, um sorrisinho condescendente. Não vou com a cara dessa menina, mas tive vontade de compartilhar seu sorriso.

_____Um frasco de remédio caiu, rolou para debaixo da mesa; Saturnina, de gatinhas, enfiou-se entre a cadeira e os pés da mesa:

_____– Misericórdia, como isso aqui tá sujo! Deve ter uma tonelada de germes, bactérias e vírus vivendo aqui embaixo, gente.

_____A estagiária levantou, encarou as ancas de Saturnina, saiu mexendo no celular. Os colegas continuaram indiferentes, teclando e carimbando suas burocracias cotidianas.

_____Saturnina sentou-se novamente. Passou o lenço umedecido no frasco, banhou as mãos com álcool gel.

_____A Bajuladora-mor chegou, esbaforida como sempre. Com o jeito estridente de falar, desembestou a reclamar do portão:

_____– De novo meu portão deu tilt. Nossa, é a terceira vez essa semana. Já reclamei com o síndico, mas ele faz corpo mole, diz que não tem dinheiro no caixa... O portão é pesadão, então, eu tive que chamar um moço que passava na rua pra me ajudar. Ele levantou o portão, ficou segurando enquanto eu saía com o carro. Meninas, quando ele esticou o braço, a camiseta subiu e deixou de fora um tanquinho... Vim pensando comigo: há males que vêm pro bem porque, se não fosse o portão escangalhar, eu não tinha visto aqueles gominhos deliciosos.

_____Tanta baboseira me obrigou a aumentar o som. Lembrei de um certo médico que veio dar uma palestra para nós. Baixote e narigudo, o sujeito parecia o Doutor Hans Chucrute; entre outras coisas, disse: “volume alto prejudica a audição, evitem o uso prolongado de fones de ouvido”. E o falatório sem sentido que sou obrigado a ouvir o dia inteiro nesse hospício, tive vontade de perguntar, mas me contive: o medo de um processo administrativo foi maior.

_____Súbito, Saturnina deu dois saltos. Confesso, me assustei: achei que estava pegando espírito. De pé, imitando uma vozinha de criança, disse:

_____– Ai que felicidade, ai que alegria! Foi desse jeito que ela falou, sabe. E pulava assim, que nem criança.

_____Um homem que esperava atendimento no balcão deve ter pensado o mesmo que eu: é maluca. A Bajuladora-mor riu. Fiquei olhando a cena patética e, pelo que entendi, Saturnina imitava a filha, que se alegrara não sei com o quê.

_____Voltei para meu relatório. “Não é à toa que a menina tem laudo”, pensei. Olhando as letras miúdas na tela do computador, imaginei a filha de Saturnina, uma jamanta de uns 17 anos, pulando e rindo e dizendo “Ai que felicidade, ai que alegria!”. Vai ver bateu palminhas também, como uma perfeita debiloide, concluí, batendo com irritação no enter.

_____Aumentei mais o som, roguei mentalmente: “Cantem, meninos de ouro, cantem! Só vocês para aliviar meu viver nesta tarde abafada e burocrática.”

 

Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritos de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", livro de contos, pela Editora Porto de Lenha, em 2020. Divulga seus escritos na página "Algumas Reminiscências Poéticas", no Facebook e em seu perfil do Instagram. Publica também os poemas no site "Recanto da Letras" e crônicas no "medium.com" e em seu blog pessoal "Raphael Cerqueira Silva - Escritor".
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