Retalhos de abril

“A manhã tenta se sobrepujar, entre as nuvens pesadas e imóveis. O Sol queima meus desejos e as nuvens confortam meus delírios, que insistem em viver dentro de mim.” 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 



_____Derramo um pouco de café sobre a xícara. O cheiro matinal emana entre os azulejos e guardanapos da cozinha. Inicio o ritual que milhares de pessoas fazem no mundo. Enquanto o dia se prepara para mim, já é noite no Japão. E as pálpebras do Oriente repousam até o despertar da última hora.

_____Eu, por outro lado, tento aquecer meus músculos. Esfrego minhas mãos uma na outra e busco encontrar um pouco de calor. A manhã tenta se sobrepujar, entre as nuvens pesadas e imóveis. O Sol queima meus desejos e as nuvens confortam meus delírios, que insistem em viver dentro de mim.

_____Tomo um gole do líquido ressucistante, percorro meus dedos sobre a mesa e encontro o pão de cada dia. Uma formiga intrusa divide comigo sua companhia. Em troca, permito que ela leve os farelos do alimento sagrado para sua casa.

_____Casa que deve estar a alguns quilômetros dos meus pés.  E nem sei, quanto tempo, essa criaturinha demorará para chegar lá. Pergunto-me, teria ela medo de mim? Da sua pequenez, sou um gigante. Qualquer piparote e a formiguinha me diria adeus. No entanto, não sou ruim. E assim como ela, também preciso carregar minhas obrigações.

_____O pequeno ser segue sua vereda, desvia-se da garrafa térmica e do pires. Frágil, como se carregasse uma tonelada nas costas. Vejo-o atravessar toda a extensão da mesa, coberta por uma tolha estampada. O inseto desaparece, desejo que regresse em paz.

_____Penso que sua jornada pode ser árdua. Do outro lado — há o frio, o vento e os pisoteios são quase que inevitáveis. Diferente da formiguinha, o fardo que levo sobre mim, comprime meus ombros e sonhos. São retalhos de abril, que costuro nas bordas do meu destino, antes que ele fuja de mim.  Enquanto meu relógio vibra mais uma vez, recolho a louça e a deixo segura na pia. Apressadamente, abro a porta da cozinha e o dia me espera pálido. Com ele sigo, dividindo meus amores imaginários e todo ar que ainda respiro.


 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame nasceu em Manaus, em 1983. É graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Amazonas. É autora do livro "Português Amoroso" (Editora Madrepérola/Maio de 2020). Escreve periodicamente contos, crônicas e poesias para os sites: "Revista Vicejar", "Revista Conexão Literatura", "Texto Garagem" e "Corvo Literário".
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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade. 

                                     

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