“Só se via as mãos avançando nos pratos de salgadinhos e na bandeja de pão de queijo, enchendo os copos de refrigerante, partindo o bolo."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____“Próximo!”, gritou a voz entediada, sem esperar que o rapaz guardasse as moedas na carteira. Mais uma vez encarei o monitor na parede, o papelote entre meus dedos. “Se essa bosta tá com defeito, então pra quê mandam a gente pegar a senha?”, perguntei ao meu eu interior.
_____ “Graça e Paz, irmã”, disse uma moça ao se aproximar do balcão. A atendente, olhos fixos na tela do computador, resmungou um “bom dia”.
_____ “Insuportável essa gente crente”, me confidenciou o senhorzinho à minha frente.
_____Não entendi por quê ele se virou pra trás e comentou isso comigo. Mas, para não deixá-lo ‘no vácuo’, como a moçada dizia no meu tempo, eu disse:
_____“Ah, é melhor crer nalguma coisa que não acreditar em nada.”
_____O senhorzinho virou-se totalmente e, mirando bem os meus míopes olhos, falou:
_____“Concordo, meu camarada. Mas ter fé não quer dizer que você tem que impor sua crença ao mundo. Vou te contar um negócio que aconteceu esta semana lá no meu serviço. Eu trabalho na prefeitura.... Ainda bem que me aposento no final do ano... E há poucas semanas contrataram uma criatura que só fala em bíblia, fica recitando salmos e cantarolando músicas evangélicas o dia inteiro... Aliás, músicas ‘gospel’, ela enche a boca pra falar que as músicas dela são ‘gospel’... Ontem, a chefia reuniu o pessoal todo pra cantar os parabéns pros aniversariantes do mês... Isso é uma tradição lá, todo mês a gente cotiza um lanchinho com um bolinho e comemora os aniversários do mês... Aí o pessoal foi entrando na salinha de reunião e, quando a chefe encostou a porta, a crente contratada, do nada, pediu a palavra. E, com aquela voz esganiçada que irrita até o mais paciente dos querubins, falou assim: ‘Meus irmãos em Cristo, antes de cantar os parabéns, quero pedir pra não cantarmos aquela parte do big e do rá tim bum. Nós precisamos parar de invocar essas palavras’.
_____ “Próximo!”, a voz ordenou. Um homem de boné caminhou até o balcão. O senhorzinho retomou a estória:
_____ “Meu camarada, ninguém entendeu patavina. Aí a chefe, talvez pra quebrar o silêncio profundo que se fez, quis saber ‘por que a gente não pode mais pronunciar essas palavras’. A crente, como uma perfeita ditadora de regras, estufou o peito feito um garnisé, correu os olhos pela sala, e disse: ‘Meu pastor explicou lá no culto que essas palavras são perigosas. Elas invocam o Mal e nós, como filhos obedientes do Senhor, não podemos nos aliar ao Mal, e sequer permitir que ele se instale em nossa casa e em nosso trabalho.’ Meu camarada, senti que aquele papo furado ia longe... Porque eu conheço meu eleitorado, tudo lá é motivo pra blábláblá e mimimi... Aí, eu interrompi aquela papiata sem propósito... Porque se tem uma coisa que não tolero é ladainha de crente... Levei a mão na bandeja de pão de queijo, catei dois de uma vez, falei bem alto: ‘ó, vamo comer que é o melhor que a gente faz’.
_____“Próximo!”
_____Antes de se encaminhar ao balcão, o senhorzinho ainda comentou:
_____“Meu camarada, eles esqueceram de cantar os parabéns, esqueceram até de ler uma mensagem cafona que copiaram da internet... Vai ver, nem notaram a cara de tacho da crente, que ficou esquecida num canto lá da sala... Só se via as mãos avançando nos pratos de salgadinho e na bandeja de pão de queijo, enchendo os copos de refrigerante, partindo o bolo.
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