Palavras de dezembro

"Geograficamente sigo distante. A cada vida, uma guerra se levanta. O mundo é um dilúvio de contradições. No lugar de bombas, meus ouvidos escutam o ressoar do meu coração descontente. 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Deito o telefone sobre a cama, faço questão de não escrever a última mensagem. Deixarei o não dito, responder por mim. Enquanto me espreguiço, vejo de modo inocente, um passarinho de penas amarelas e pretas, aterrissar seu corpo franzino, sobre o parapeito da janela.

_____Cristina, minha gata siamesa o observa. Estuda seus movimentos na busca de surpreendê-lo. Na exatidão que contemplo suas artimanhas, a tv exibe imagens da guerra. Entre ruínas, sangue e pó, o mundo tenta se erguer. Trôpego, ele transpira a solidão, alicerçada com o sofrimento e a morte.

_____Cansada das manchetes apocalípticas, ignoro o noticiário e puxo um mapa-mundi encurralado entre dois livros. Arrisco-me em localizar o Oriente Médio, para logo meus dedos cruzarem os oceanos e continentes. Mísseis alcançam o horizonte, fervilham ofuscando o fulgor das estrelas.

_____Geograficamente sigo distante. A cada vida, uma guerra se levanta. O mundo é um dilúvio de contradições. No lugar de bombas, meus ouvidos escutam o ressoar do meu coração descontente. Eu não distribuo munições, apenas palavras que caem soltas e explodem, atiradas pelos canhões ou silenciadas em trincheiras.

_____Soldados morrem em combates, mas as palavras resistem, nas superfícies cobertas pelo fogo armado. Milhões de vidas redigem suas angústias, no momento que decifro desenho em nuvens. Percorro o mundo e na inutilidade das minhas ponderações, encontro-me como um minúsculo ponto invisível, nessa esfera azulada.

_____Aprisionada no bombardeio de emoções, o celular volta a vibrar.  Alguém deseja se comunicar através de caracteres que não expressam sentimentos. Na janela, o passarinho gorjeia tristemente. Segue seu instinto de pressentir o predador que o rodeia. No olhar da singeleza, opto por guerrear a favor do pequeno ser. Cristina me reprova, chicoteia seu rabinho e ensaia um pulo fatal. Assovio e, ligeira, a ave ganha o céu. Penas caem lentamente sobre o chão, com a brandura de que tanto procuro, nessas palavras de dezembro.

 

 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame nasceu em Manaus, em 1983. É graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Amazonas. É autora do livro "Português Amoroso" (Editora Madrepérola/Maio de 2020). Escreve periodicamente contos, crônicas e poesias para os sites: "Revista Vicejar", "Revista Conexão Literatura", "Texto Garagem" e "Corvo Literário".
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