"Eu, que nasci e me criei entre o diesel e a poeira do asfalto, o concreto e a barulhada dos ônibus e trens, gosto de ouvir versos sobre a bucólica e saudosa vida no campo."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____Todas as sextas, JV me envia mensagem: que eu vá prestigiá-lo no Cana Caiana, esse barzinho recém inaugurado aí na esquina. E todas as sextas, como hoje, agradeço, e dispenso o convite. Não desgosto do repertório de JV. Pelo contrário, ouvi-lo dedilhar canções de amores frustrados e traições, de gado e rio e sabiá, tocam nalgum cantinho da minha alma sertaneja.
_____Eu, que nasci e me criei entre o diesel e a poeira do asfalto, o concreto e a barulhada dos ônibus e trens, gosto de ouvir versos sobre a bucólica e saudosa vida no campo. Saudades do que não tive, ou “talvez sejam reminiscências do que você viveu na outra encarnação”, comentou uma amiga espírita. Na tarde em que ela disse isso, fiquei a cismar: será que noutra existência fui um jeca, como aquele personagem do Mazzaroppi, que vagava pela roça, os pés no chão, camisa xadrez, chapéu de palha, matinho no canto da boca desdentada, a ruminar uns nois foi e nois vai?
_____JV não sabe, mas ouço-o cá da minha sala. À meia luz, deitado no sofá, às vezes degustando um vinho, noutras me embriagando de pensamentos, ouço claramente os acordes do violão e seus agudos que me fazem lembrar Zezé di Camargo no início da carreira. Para cada verso xonado, trago o vinho e o cigarro.
_____Sim, voltei a fumar. Não queria, todavia, a solidão me puxou pela mão, me arrastou para a cama, e o resultado aí está: roupas impregnadas de nicotina, o cinzeiro lotado de guimbas ao lado do Hemingway, do Bukowski, do Faulkner.
_____JV canta a paixão, o luar, os bailes de peão. Cá na sala, a fumaça se espraia, bailando indolente diante do abajur e da cópia mal-ajambrada do Di Cavalcanti que ganhei num amigo oculto lá da autarquia.
_____Certa vez, comentei: não faz sentido eu ir ao Cana Caiana, pedir mesa, esbarrar o tempo todo em bebuns que falam alto, se posso ouvi-lo, de pijama, largadão no sofá, a ruminar minhas idiossincrasias (e, agora, baforando meu cigarrinho). Mas, eu sei, os artistas são vaidosos: querem aplausos, querem ver o povo dançando e se empanturrando de fritura e álcool “não se importando se quem pagou quis ouvir”, como diz aquela canção do Bituca.
_____Na última sexta, enquanto Felina me encarava, sonsa como sempre, JV dedicou uma música a mim. Ouvi claramente meu nome antes dos acordes iniciais. Enchi a taça, fiz um brinde no ar. Felina murmurou qualquer coisa, farejou não sei o quê no vaso da comigo-ninguém-pode, trepou na mureta.
_____Ah, a título de esclarecimento: Felina é a gata da filha da vizinha. Volta e meia salta aqui para casa, me encara com olhos pidões e, quando se lembra que aqui só se bebe e fuma, volta à rua. Na semana anterior, cagou na minha varanda. Queixei-me à vizinha: ‘desculpa, isso não vai se repetir’, disse num tom civilizado, porém, falso. Ao seu lado, a menina ficou me olhando como quem diz: se cagou, limpa e pronto.
_____Não gosto de crianças: são críticas demais. Gatos também não curto, contudo, tolero a Felina. Ela tem um quê de gata egípcia, tipo aquelas esculturas de deusas, metade gente e metade bicho, que eu via na enciclopédia da escola.
_____Tolero a Felina: tenho receio de seus olhos enigmáticos. E também porque a vizinha, certa feita, postou na internet que “esse pervertido desalmado do 91 devia ser eliminado do bairro: jogou pedra na minha pobre gatinha”. Postou, aquilo ganhou corpo, avolumou, deu um bafafá... quase que o garoto foi linchado por uma horda de protetores dos animais. Cercaram-no no adro da igreja e, não fosse o sacristão intervir, babau garoto do 91.
_____Os olhos de Felina metem-me medo, contudo, as postagens da sua dona são mais perigosas... Voltando ao JV: pela manhã, enviei-lhe mensagem, pedi que cantasse “Fogão de Lenha”. Nunca morei na roça, não tenho parentes no meio rural, mas essa canção me emociona tanto... às vezes, dependendo do meu estado de espírito, lágrimas rolam embaçando-me os óculos.
_____Hoje, JV está apresentando repertório diferente, mais moderno. Umas modas de pegação e bebedeira, que eu não curto. Da janela, observo a frequência no Cana Caiana: moçada que provavelmente não bateu na casa dos vinte anos, de copinho na mão, roupa justa, corpo sarado... O show não vai me agradar, já notei. Mas, vamos aguardar: vai que ele faz um pot-pourri com músicas dos anos 90... Quem sabe até se lembra da minha mensagem!
_____Enquanto isso, mais um trago para ajudar a organizar o pensamento.
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O articulista atua como Colaborador deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista do autor, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.
De extrema felicidade ao analisar um sujeito que gosta mesmo é do conforto de casa. Bastante poético.
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