"Eu não soube o que dizer. Aliás, nunca sei o que dizer nesses momentos: sou péssimo para confortar pessoas. Seus olhos pidões, contudo, me exigiam qualquer coisa."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA
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_____A chuva banhava o morro, as poucas árvores que restaram na avenida, os carros no estacionamento.
_____“Vou tomar café”, disse a ninguém em particular.
_____Fiz logoff dos sistemas, passei a mão na Tupperware. E, antes que algum chatonildo implicasse, encostei a janela: esse povo, cruz-credo, não pode ver chuva que fica ouriçado e desembesta a reclamar que ‘vai molhar as mesas, queimar o computador’.
_____Encontrei Livalda na cantina. De pé, encostada na pia, secava algumas lágrimas sem deixar de encarar o celular.
_____“Morreu alguém”, concluí. Mas, como sei que é extremamente sistemática, permaneci calado: anos e anos de convivência com essa gente daqui me fez conhecer cada uma de suas manias. Livalda, por exemplo, odeia receber os parabéns no aniversário, escapole das confraternizações no fim do ano como o diabo da cruz, nunca dá abertura para que lhe perguntem sobre sua vida e a de seus familiares, não admite nenhum tipo de brincadeira...
_____Destampei o pote. O bolo gritava: coma-me, coma-me! Tal como Alice na antessala das maravilhas, cedi.
_____Olhei para os lados à procura do talher. Livalda se desmanchava. Talvez por eu estar sentado de costas, se sentiu confortável para abrir o bué. Estiquei o braço, peguei a colherzinha que as velhotas usam para medir o açúcar: toda tarde, feito britânicas, elas sentam para tomar chá e discorrer sobre o alheio... Ah, quem dera tivessem a finesse de Agatha, Lady Di ou, quiçá, Elizabeth II.
_____Mergulhei a colherzinha no mar de glacê. Um soluço sentido, contudo, me trouxe à nau da burocracia. Olhei a parede: no relógio, a vaca de laço cor-de-rosa parecia ordenar: “Pergunta o que se passa, cretino, pergunta logo!”
_____Limpei o canto da boca com o dorso da mão, me virei.
_____Livalda, pega de surpresa como o garoto que bate punheta no banheiro, baixou a cabeça.
_____“Aconteceu alguma coisa?”
_____“Nada, não. É bobeira minha”, retrucou, guardando o celular no bolso.
_____Inquietos, os pingos da chuva salpicaram no basculante. O tempo estava mesmo fechando, pensei.
_____Livalda abriu a geladeira, encarou os pães embolorados, o iogurte estufado, o vidro de açúcar destampado.
_____“Se precisar de alguma coisa, pode falar”, comentei. E, temendo que me pedisse para repartir meu lanche com ela, levei um pedação à boca. Porque, convenhamos, o bolo mal dava para mim, que dirá encher seu pandu... Todavia, tive a impressão que eram outras suas preocupações. Agoniados, seus olhos palmilhavam as prateleiras; os dedos roliços relaram potes e garrafas sem se interessar por nada... Fiquei imaginando o tanto de comida que devia devorar: a cada ano, seu corpo expande-se mais e mais, as dobras digladiam com as roupas... Nos corredores, à boca pequena, chamam-na de Dona Bujão.
_____De repente, Livalda danou a chorar e soluçar igual a um neném faminto.
_____ “Meu Deus, e se resolver explodir aqui e agora? Vai voar banha, geladeira, celular, fogão, cadeiras, bolo e, ai, meus pobres ossinhos pra tudo quanto é canto!”
_____A vaca, toda pretensiosa com seu laço, insistia em me encarar.
_____“O que tá acontecendo?” Sinceramente, eu queria mesmo é que Livalda picasse a mula, e me deixasse em paz com minha merenda.
_____“Sabe que que é?”, perguntou com uma vozinha patética.
_____Por pouco não retorqui: “Não sei, também não quero saber mas...”
_____Enfim, fechou a geladeira; puxou a cadeira e, feito uma Xerazade fora de forma, desfiou o enredo:
_____“Um amigo dos tempos de escola mandou pra mim uma foto no zap. Do aniversário dele de oito anos. Eu tô no meio dos outros meninos, do lado da mesa enfeitada com balas de coco e cajuzinho... Ah, nunca me vi criança! Lá em casa não se usava tirar retrato. Naquele tempo, não era qualquer um que podia ter máquina fotográfica, né. E pagar retratista era luxo que a gente não tinha... as coisas eram tão difíceis naquele tempo! Não tive dessas festinhas. E quase nem ia nos aniversários, porque a gente não tinha dinheiro pra comprar presente... Nossa, a vida era tão dura! O pai torrava o pouco que ganhava com jogo e bebida, vivia na farra. A mãe, tadinha, tentava botar um dinheirinho em casa lavando pra fora e vendendo salgadinho... tempos difíceis.”
_____Chorando como uma carpideira profissional, Livalda interrompeu a narrativa.
_____Eu não soube o que dizer. Aliás, nunca sei o que dizer nesses momentos: sou péssimo para confortar pessoas. Seus olhos pidões, contudo, me exigiam qualquer coisa. Para ganhar tempo, levei à boca mais um pedaço de bolo. Mastiguei lentamente, tentando vencer o desconforto de não ter o que falar.
_____Uma formiga enxerida rondou minha Tupperware.
_____“Me vendo na foto, fiquei pensando o tanto que meu filho é a minha cara, quando eu tinha a idade dele... Vou sair mais cedo, procurar alguma loja pra revelar essa foto... ainda se diz revelar, cê sabe? Depois, vou passar na padaria e comprar um bolo, desses bem confeitados, pra comemorar. Me rever menina me deu uma emoção tão grande!”
_____A boca esvaziara; o pote, infelizmente, também.
_____Com o fura-bolo, matei a formiga. Uma a menos pra encher o saco.
_____TIC TAC TIC TAC
_____A incansável vaca marcava o tempo.
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