A receita de Dona Marineila

"Com o tempo, a mãe foi me ensinando a preparar bolos e doces; passei a ajudá-la nas encomendas que recebia para aniversários e casamentos." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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        No dia em que Dona Marineila faleceu, encontrei, entre sua cama e o criado-mudo, um papelote dobrado ao meio. Enquanto velas e cravos impregnavam a casa de morte e, na sala, as mulheres pranteavam o corpo, eu zanzava olhando as fotos amarelecidas. Na parede cor-de-rosa, o Cristo em madeira parecia zangado: “Não bula nas coisas dos outros, seu moleque!” 

        A mãe passava o café na cozinha. No terreiro, o galo cantou fora de hora. Uma dona de vestido estampado entrou no quarto com um terço, me encarou. Súbito, guardei o papelote no short. Debruçado à janela, fingi prestar atenção nas galinhas que cacarejavam, tristonhas, como se entendessem o que se passava no interior da casa. A dona pegou um castiçal na penteadeira, persignou-se, saiu arrastando os chinelos. 

        À noite, enquanto a mãe preparava a janta com pressa para voltar ao velório, perguntei: “A gente escreve xícara com ch?” Ela fez um gesto com a mão, balançou o pano de prato da mesma maneira que fazia quando os mosquitos voejavam sobre os pratos... Hoje, olhando pelo retrovisor da memória, compreendo: não era dia nem hora para perguntas gramaticais; daí o gesto de irritação da mãe... Fiquei, então, encostado no batente da porta, olhando-a encher meu prato com arroz, tomate e batata frita. Insisti (eu era um pela-saco), ela me mandou sentar. Secando os talheres, explicou: “Xícara escreve igual xarope, Xuxa, xampu, que o nome do seu tio Xisto. Por que pergunta isso agora?” 

        Esquecido daquela lição do Professor Girafales, respondi com outra pergunta: “Xícara escreve que nem o nome do Xaveco?” 

        A mãe franziu a testa: com certeza não conhecia o personagem da revistinha. Abriu a geladeira, tirou a jarra de suco, repetiu: “Por que pergunta isso agora?”. Tirei o papelote do bolso e lhe mostrei. Ela quis saber onde o encontrei, não vi problema em dizer. 

        "Não se pega as coisas da casa dos outros, ainda mais de gente morta!", berrou, batendo a porta da geladeira. Lembrei do Cristo que pendia sobre a cama de Dona Marineila; mas, ao contrário Dele, a mãe foi mais brava: fiquei sem gelatina. 

        “Pra você aprender a não mexer com o que é dos outros, seu moleque”, sentenciou, com o papelote ainda na mão. 

        Engoli a janta, em silêncio, olhando a televisão: começava Éramos Seis. A mãe guardava as panelas com estrondo, parecia não se lembrar da novela que a gente assistia toda noite. 

        Palmas no portão me salvaram de outro esculacho: a vizinha da frente chamava para voltarem ao velório. A mãe secou as mãos no pano de prato, saiu tão apressada que esqueceu o papelote em cima da mesa. Eu o coloquei novamente no bolso para, mais tarde, guardá-lo na canastrinha de madeira que a vó me dera. 

        E guardado está até hoje, dentro da mesma canastrinha, com alguns resquícios de minha meninice (biroscas, um pião, um ioiô trincado, adesivos usados, moedas de cruzeiros e cruzados, um Aquaman sem perna, figurinhas, cotocos de giz). Naquela época, eu fazia como a boneca Emília: tudo que achava pela casa, na rua ou na escola, guardava na canastrinha. 

        Com o tempo, a mãe foi me ensinando a preparar bolos e doces; passei a ajudá-la nas encomendas que recebia para aniversários e casamentos. Um dia, aproveitando que ela saíra para entregar cajuzinhos e balas de coco, peguei o papelote. Desdobrei-o com cuidado, como se fosse um mapa do tesouro. Corri à cozinha, fiz o bolo do jeito que estava na receita. Quando a mãe voltou, reclamando que a freguesa “só vai pagar no fim do mês”, o bolo esfriava na janela. 

        Neste sábado nostálgico, enquanto o vento sibila nas mangueiras do quintal e o bolo assa, escrevo este texto. E lembro da mãe, que já se encontra na companhia de Dona Marineila. 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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