Baleia

"Na força maior, que reside a nossa bondade, abri o portão, sem a prestação de conta de que deveria fechá-lo ou cronometrar os minutos da visita canina."  

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Surgiu assim, há pouco menos de um ano. Na estação final, fora deixada dentro de uma caixa de papelão, ao lado de seu irmãozinho. No sobe e desce dos passageiros, ela recebia alguns agrados, pedaços de pão, água e um abrigo debaixo de um telhado de zinco. No entanto, não havia nada, que por ora, pudesse afastar daquela criatura peluda, o assombro do abandono.

_____De vez em quando, eu a visitava, derramava num surrado pote vazio de margarina, punhados de ração. Entre o calor e a chuva, ela tentava sobreviver, corria atrás do vento, ou quando não, das motos e carros. Uivava, latia querendo se mostrar feroz. Contudo, ela não era, até porque, mesmo com sua resistência, consegui alcançar sua cabecinha e fazer cafuné algumas vezes.

_____O tempo seguiu, seu irmãozinho fora adotado. Machos possuem essa facilidade, talvez, por não conceberem à luz. Todavia, os homens esquecem que os filhotes não são gerados sozinhos. E a cada um, o cuidado deve ser o mesmo.

_____Sei bem, o amor tem disso — perscruta nosso coração, não para provar, mas para ter certeza. Dia após dia, aquele animalzinho chegava-se mais próximo de mim. Não podia ouvir as trancas do portão se abrirem, que logo levantava as orelhinhas — sabia que ali, eu estava. Com os rabinhos entre as patinhas traseiras, ela encenava um breve ensaio do amor.

_____Aceitei, então, o convite de ser amada por aquela criaturinha, que paulatinamente crescia, rodeada pelos outros cães de rua. Na força maior, que reside a nossa bondade, abri o portão, sem a prestação de conta de que deveria fechá-lo ou cronometrar os minutos da visita canina. Batizei- a de Baleia[1] e a caramelo feliz, correu pelo pátio, como se reconhecesse que aquele lugar, agora também a pertencia. 

_____Diferente da cadelinha de Fabiano[2], a minha Baleia escreve sua história com tintas de alegria. Ela tem me mostrado que atravessar o sertão da vida, vale muito mais a pena, quando se tem um doguinho ao lado, sonhando com um paraíso cheio de preás... 



[1] Cadelinha de estimação da família de Fabiano do romance Vidas Secas.

[2]  Personagem do romance Vidas Secas.


 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame nasceu em Manaus, em 1983. É graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Amazonas. É autora do livro "Português Amoroso" (Editora Madrepérola/Maio de 2020). Escreve periodicamente contos, crônicas e poesias para os sites: "Revista Vicejar", "Revista Conexão Literatura", "Texto Garagem" e "Corvo Literário".
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