Lusco-fusco

"Deus incendeia o céu e os anjos borrifam toda a tintura. Confundo as cores e tento adivinhar a inspiração divina, nessa arte concreta, mas abstrata para os homens."  

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Deixo a chave da casa sobre a mesa. Abro a janela da sala e um lusco-fusco é agraciado por mim. O céu tonalizado numa miscelânea de cores, arde em minhas pupilas, enquanto no horizonte, nuvens perfiladas escondem o fulgente pôr do sol. 

_____No momento em que medito a respeito do meu dia, a natureza expõe seus métodos, sua substância e seus personagens. Não tenho vista para o mar, como alguns cronistas sortudos salientam em suas crônicas. Meu cenário é de uma vasta mata verde, que ainda tenta se sobrepor à loucura e insensatez dos homens. 

_____Nesse devaneio a que me apego, pouco tenho a escrever. Os dias são números nos calendários, que logo se perdem e se cancelam com o x da caneta. O coaxar dos sapos e o cricrilar dos grilos são ruídos de uma noite, que emplastra a cidade, com seu manto pincelado em breu. 

_____Com a vista em estado de fadiga, as letras se duplicam, tentam encontrar seu espaço, assim como as estrelas anseiam ser arranjos na morada dos aviões. O lusco-fusco é um texto tétrico, prelúdio da solidão de alguns. 

_____Deus incendeia o céu e os anjos borrifam toda a tintura. Confundo as cores e tento adivinhar a inspiração divina, nessa arte concreta, mas abstrata para os homens. Será que Deus poderia escutá-los? 

_____Longinquamente, uma sirene se une aos latidos uníssonos dos cães. Do outro lado, casinhas acendem suas primeiras luzes e um garoto descansa sua bola de futebol debaixo de seu braço. De corpo úmido, ele segue possivelmente para o jantar que o espera. 

_____E nós, o que esperamos? 

_____Os faróis dos carros rastreiam o asfalto quente. O lusco-fusco pisca e se engradece nos jardins. Vaga-lumes deixam suas tocas para iluminar as roseiras e canteiros. O dia adormece, derrama-se submisso ao sono do tempo e à calidez dos corações. 

_____O amanhã há de se repetir, ele apenas remaneja algumas cenas e convoca novos atores. O lusco-fusco virá outra vez, com seu início e fim, feito a vida que nos prescreve. 


 TEXTO: Mayanna Velame 
INSTAGRAM: @portugues_amoroso 
Mayanna Velame é escritora, poeta e professora nascida em Manaus. É autora dos livros: "Português Amoroso" (2020) e "Cactos e Tubarões" (2023). Foi finalista do Prêmio Selo Off Flip (2022), na categoria conto e vencedora do 6º FLIM (2023), promovido pela Academia Volta-redondense de Letras com o conto: "Professor Jeremias Bartolo". 
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