Desandou tudo

"A porta bate com força. Passos apressados ecoam nos azulejos. Deve ser alguém tão necessitado quanto eu." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Ai, maldita hora que misturei aquela comida toda. Bem que a mãe dizia: “Fica de esganação, depois vai doer a barriga”. Ah, antes fosse só dor de barriga... Quando comecei a suar frio e arrepiar, devia ter imaginado logo: ia desandar tudo. Mas não achei que seria tão rápido... Ai, só me resta então ficar aqui, olhando xotas, pirocas e palavrões rabiscados na parede.

_____Ah, meu Pai, estou podre por dentro e não sabia. E falam por aí que em poucos segundos o nariz se acostuma a qualquer cheiro... Quem disse essa baboseira ainda não passou pelo que estou passando. Ui.

_____A porta bate com força. Passos apressados ecoam nos azulejos. Deve ser alguém tão necessitado quanto eu. Nessas horas me arrependo de ter comido feito um padre dos romances oitocentistas. Agora, cá estou, largando minha alma neste vaso capenga. E, provavelmente, ouvirei o vizinho fazer algo parecido no box ao lado.

_____“Vai depressa. Tem que ser rapidin, viado.”

_____“Peraí, e se chega gente?”

_____“Cê não trancou a porra da porta?”

_____“Mas ia chamar atenção.”

_____“Chama nada. A gente faz rapidin, tá ligado... Vai lá trancar, eu guento aqui.”

_____Achei que fosse um, mas são dois que entraram. A julgar pelos timbres das vozes, ainda não se despediram da adolescência. E, definitivamente, não vieram descarregar suas necessidades. Quero dizer, não as necessidades viscerais.

_____Um par de havaianas passa apressado pelo vão entre o chão e o box onde estou.

_____Os pelos do meu braço voltam a arrepiar. Ô disgrama de maionese de camarão!

_____“Pega aqui, viado... Não, assim não, caralho.”

_____“Num tenho jeito pr’essas coisas.”

_____“Com o tempo cê pega as manha.”

_____“Sei não. Tô tremendo, ó só. E se vem alguém?”

_____“Cê não trancou a porta? Agora para de falar, relaxa. Bota a mão aqui ó... Assim não, porra. Deixa eu enfiar, vira pra cá.

_____Ui, se não estivesse tão mal das pernas – e dos intestinos – saía daqui e falava umas poucas e boas para esses dois. Com tanta menininha cheirosa dando sopa pelo shopping, eles ficam aí, de esfregação? E justo na hora que estou usando o banheiro... Nossa, estou me esvaindo de novo.

_____“Porra, isso aqui tá podre.”

_____“Pega a visão, cara. Isso aê. Arreda pra cá qu’eu vou enfiar mais.”

_____“Peraí, cabe tudo não.”

_____“Cabe sim. Enfiei tudo quando o Cecéu veio comigo.”

_____“O Cecéu faz essas parada?”

_____“Se liga aí, viado. Muita falação só atrapalha.”

_____Batem à porta. Ou melhor, esmurram-na.

_____“Abre, abre!”

_____Os carinhas ficam mais agitados.

_____“Fodeu, cara. Vão pegar nós!”

_____“Calma, calabreso, tá quase. Vem mais pra cá.”

_____“Vai, acaba com isso, vai.”

_____“Num mexe demais, viado, se não sai pra fora. Ah, já tá cabando.”

_____Um estrondo. Dessa vez não sou eu. Afinal, é não possível que ainda tenha camarão, maionese, feijoada, mocotó, acarajé para sair... Alguém chuta meu box, xinga, reclama da porta trancada. Vejo o Nike passando depressa. O mijo jorra, forte, feito água pelo ladrão.

_____Os pervertidos estão caladinhos. Devem ter terminado a safadeza que... Ui, não posso concluir o pensamento: despejo mais merda. 

_____“Puta-que-pariu, tá podre, hein, mano!”

_____É o cara que arrombou a porta. Penso em mandá-lo para o inferno, contudo, me faltam forças.

_____As florzinhas aqui do lado continuam quietinhas feito girassol em dia nublado. Súbito, uma voz de dublador das antigas ordena:

_____“Mãos ao alto! Todo mundo pra fora, com as mãos pra cima!”

_____Vejo coturnos, ouço outras vozes.

_____“Pra fora, vai, vai!”

_____O box ao lado é aberto com violência. Me escorando na parede, levanto com dificuldade. Trêmulos, meus dedos puxam o trinco. As bichinhas e o sujeito dos Nikes estão com os rostos e as mãos virados para os azulejos. Um policial, cara de poucos amigos e músculos que parecem querer estraçalhar a farda, os revista. O outro policial, pistola apontada em minha direção, me manda emparelhar com os caras. O segurança do shopping pega a mochila que está entre as pernas de um dos garotos e, vitorioso, anuncia:

_____“Aqui, senhor, as joias estão todas aqui. Não falei que eram eles? Meteram tudo na mochila, ó só como tá estufada.”

_____Rapidamente, os militares algemam os ladrõezinhos. Mais não vejo, porque volto correndo ao box. 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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