Um dia livre na vida do cronista

"A bandinha, postada na escadaria do teatro, toca antigas músicas. Ao microfone, um homem convida a trupe a iniciar as danças." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Tenho parte do dia livre. Puxo a cortina: se o noticiário está correto, entre amanhã e depois chegará nova frente fria. Resolvo, pois, aproveitar o sol e bater perna pelas ruas que, a essa hora, devem estar mais ou menos cheias. Troco a camisa, dou uma ajeitada no cabelo emaranhado (passou da hora de cortar, eu sei, mas não será hoje). Saio, decidido a me dar ao desfrute, como dizia aquela mulher da novela.

_____Livre, caminho entre a gente apressada, os veículos barulhentos, as calçadas irregulares.

_____Sentada em um tamborete, uma dona oferece pano de prato. Três por dez, insiste. Não os quero, digo, entrando na galeria. Várias lojas com portas cerradas, placas de aluga-se por todos os lados. Um homem dorme estirado no chão, entre a loja de lingerie e a de eletrônicos.

_____Saio no calçadão, onde um anão toca um banjo. Sobre o banquinho de madeira, um chapéu-coco e o pedido pintado no papelão: AJUDA UM ARTISTA DE RUA. Abaixo, também em garranchos, os números da chave-pix.

_____As pessoas passam, apressadas demais para ajudar. Como elas, não ajudo: faltam-me trocados. Os últimos, gastei ainda a pouco, comprando balas-de-goma da moça que pedia, ou melhor, implorava ajuda para comprar leite para suas crianças.  

_____O anão toca um medley, eu vou pelo calçadão.

_____Um rapaz me entrega um santinho – mais um para encher meus bolsos: desde que saí, fui abordado por não sei quantas pessoas pedindo votos para seus candidatos. Ele agradece, meio tímido, volta para o grupo que balança bandeiras, os sorrisos cínicos dos políticos a tremular nos tecidos coloridos.  

_____Viro à direita.

_____Em frente ao teatro, um grupo fantasiado. Vi gente vestida assim em Blumenau, por ocasião da Octoberfest. Crianças passam correndo, uma menininha de olhos incrivelmente azuis e cachos dourados como o sol me estende um folder. Ai, mais um. Mas, ao contrário do que pensei, não é pedido para votar neste ou naquele candidato e sim um convite: em setembro, a trigésima quinta Deutschesfest. Agradeço, ela sai à procura dos amiguinhos.

_____A bandinha, postada na escadaria do teatro, toca antigas músicas. Ao microfone, um homem convida a trupe a iniciar as danças. Enquanto se organizam, ele ajeita o chapéu de feltro e conta sobre a árdua e penosa chegada de seus antepassados à cidade, descreve as verdejantes e auspiciosas terras destinadas à formação da colônia pelo benemérito imperador Dom Pedro II... Confesso, não guardei mais informações. Os adjetivos, o vaivém das pessoas indiferentes ao círculo em formação, talvez os acordes do Boi Barnabé escapulindo do banjo, vai ver é apenas a burocracia em meus ombros já não tão novos assim.

_____Um drone sobrevoa o grupo.

_____A menininha de cachos dourados como o sol me estende outro folder. Digo que já tenho um. Ela pisca os olhos incrivelmente azuis, parece não entender. O barbudo com cara de roqueiro que ainda a pouco parou ao meu lado me encara. Antes que pense que eu esteja fazendo desfeita com a menininha, ou imagine coisa pior, aceito o folder. Mais um para o bolso e, mais tarde, para o lixo. Ela se vai, satisfeita, eu me afasto. 

_____Sob a marquise, me protejo do sol e do barbudo mal-encarado, enquanto aguardo a apresentação começar.


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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