Gineceu

“O professor, antevendo que começará tudo outra vez, cobra silêncio. Uma bolinha de papel passa zunindo por sua orelha." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____— Observemos, agora, esta imagem. É a representação de um gineceu. Nela, vemos três mulheres se preparando para o banho... Vocês compreendem o significado do gineceu na Grécia Antiga?

_____Afora o ruído do ventilador e o caminhão de lixo lá na rua, nada mais se ouve na sala. Alunos cochilam, outros mexem nos smartphones; um garoto de óculos mira qualquer coisa no teto; ao lado, alguém rabisca a carteira enquanto, lá no fundo, o Calil se masturba.  

_____— Ninguém arrisca um palpite?

_____— Gineceu é aquele trem que tem na planta e que serve pra ela reproduzir, né?

_____Em uníssono, a classe debocha do aluno da segunda carteira. A garota atrás dele se manifesta:

_____— A aula de biologia é depois, burro.

_____— Mas o raciocínio do seu colega não está de todo errado. Escutem, por favor. 

_____O professor tenta, a todo custo, conter o falatório:

_____— Só um instante de atenção, faz favor. Raciocinemos: uma vez que o prefixo gine relaciona-se ao feminino, mais especificamente ao aspecto reprodutivo do gênero feminino...

_____Uma voz de taquara-rachada grita que o professor vai falar de sexo. A turma se empolga, o vozerio novamente domina a classe.

_____— Esperem, a aula não é sobre isso. Por favor, me deixem explicar...

_____— Ó só, galera, as muié do desenho tão na maior sacanagem aí no banheiro.

_____Retumbam gaitadas, ruídos dignos de hordas bárbaras assaltam a sala. O professor aumenta o tom de voz:

_____— Ô, gente, só um minutinho de silêncio! Não é nada disso. Por favor, preciso da cooperação de todos. Vocês são muitos, não dá para eu falar se vocês todos falam ao mesmo tempo.

_____Os alunos ignoram.

_____Súbito, o apagador voa sobre a classe, espatifa-se na enorme glande que alguém rabiscou com giz vermelho na parede. Olhos se arregalam, cabeças tombam nas carteiras.

_____Volta-se a ouvir o ventilador. Um vira-lata late ao longe.

_____— Agora posso continuar?

_____Lá no fundo da sala, o pênis avermelhado continua ereto, imponente, abusado.

_____— Ótimo. Dizia eu que, no mundo grego, pelo menos entre a elite, o sistema familiar era patriarcal e, portanto, limitava a liberdade feminina. Precisamos compreender que o universo masculino era nitidamente separado do feminino. Assim, enquanto aos homens competiam as atividades sociais, como a política e a guerra, as mulheres exerciam tarefas domésticas e reprodutivas.

_____— Tipo as vacas do meu pai, comenta o garoto cujo rosto já deveria ter conhecido gilete há tempos.

_____A garota ruiva vira-se na primeira carteira, o chama de tóxico e nojento.

_____O professor, antevendo que começará tudo outra vez, cobra silêncio. Uma bolinha de papel passa zunindo por sua orelha.

_____— Assim não dá, gente, definitivamente não dá. O mínimo que exijo é respeito. Preciso ministrar o conteúdo, a escola tem um cronograma a cumprir, então, posso prosseguir com a aula? Ou precisarei zerar a nota de todos para ter atenção daqui por diante?

_____O ventilador continua a zunir, o vira-lata late feito um danado.

_____— Prosseguindo. Considerando que as mulheres da elite não precisavam trabalhar, e também não deviam se expor ao sol para não prejudicar a beleza, ficavam então reclusas no gineceu. Ou seja, como a imagem representa, o gineceu era este espaço, digamos, um aposento do lar destinado às mulheres. Ali elas se cuidavam, cuidavam da beleza, se preparavam para se tornar mães...

_____— Ficavam esperando os machos voltar da guerra pra emprenhar elas.

_____A garota ruiva vira-se novamente, exasperada:

_____— Seu machista tóxico. Vou te denunciar na diretoria. Não sou obrigada a ouvir comentários misóginos.

_____A classe se polariza: de um lado, os defensores do garoto e, do outro, os que incentivam a menina a denunciar. Lá no fundo, o falo parece fazer coro aos gritos de “porrada, porrada!”.

_____— Pessoal, por favor, silêncio. Primeiro vocês me ouvem, depois abro para os debates. Mas debate sadio, agressões não tolerarei.

_____Outra bolinha sobrevoa, embrenha nos cabelos ruivos da garota. Ela xinga a sala inteira. Vaias irrompem de todos os lados. 

_____O professor esmurra a mesa:

_____— Calem a boca e me deixem trabalhar!

_____O ventilador volta a ventilar em paz.  

_____— Uma vez que a relação entre os casais privilegiava a reprodução havia, na Grécia Antiga, relações sexuais fora do casamento. Essas relações ocorriam com outras mulheres, as chamadas hetairas. Contudo, era comum também homens casados se relacionarem com outros homens e, a isso, os gregos denominavam amor nobre.

_____— Viadagem isso. Ou cê vai querer convencer nós que isso é normal?

_____O professor se controla para não dizer poucas e boas ao garoto da voz de taquara-rachada e, antes que a turba se manifeste, prossegue:

_____— Essas relações nada tinham de homossexuais ou homoafetivas, mesmo porque estes são conceitos desconhecidos dos gregos antigos. Atenção, por favor: a noção de sexo como algo errado ou pecaminoso surgirá séculos depois, no período medievo.

_____— Ó, o fessor tá justificando a viadagem!

_____Novo tumulto, a classe novamente se polariza entre os que se interessam e os que odeiam o assunto. De repente, cinco alunos se dirigem à porta. O professor quer saber aonde vão. A líder do grupo emposta a voz:

_____— Tá amarrado em nome de Cristo Jesus! Vamos te denunciar à direção, seu pervertido. Gravamos tudo nos celulares. Ainda bem que nosso pastor mandou a gente ficar alerta. Ele sabia que iam falar dessas coisas satânicas aqui no colégio.

_____A voz hercúlea de Calil impera na sala:

_____— Porra, gente, deixa o professor dar a aula dele! Agora que tava ficando bom.

_____— Cê tá gostando porque é chegado a enrabar uns meninos lá no banheiro...

_____Calil pega a carteira, ameaça jogá-la no garoto de rosto oleoso. O professor se interpõe entre eles implorando ordem, respeito, silêncio, paz. Lá na frente alguém solta:

_____— Se bobear, esse cara come a gente.

_____As gaitadas voltam. O professor não sabe se se referiram a ele ou a Calil que, cadeira em riste, jura:

_____— Vou quebrar tua cara depois da aula, seu babaca.

_____O sinal toca.

_____Os alunos empurram uns aos outros, desaparecem pela porta como uma tropa em debandada. 


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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