Onze-catorze

“Sentado na cozinha, eu ficava encucado. Suspendia as lutas entre meus índios e caubóis, olhava o trinca-ferro na gaiola: pra quê falar o número do telefone todo?" 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____11:14 horas.

_____Raras são as vezes que consigo iniciar o expediente nesse horário. Normalmente chego por volta do meio-dia. Mas a friagem que assaltou a cidade nesta semana me forçou a tomar uma decisão: chegar mais cedo e, assim, voltar mais cedo para casa. Adiantei o almoço, apressei o passo, e cá estou.

_____Um clique: ponto registrado.

_____11:14 horas.

_____Vou para minha mesa. Súbito, feito um flash daquelas antigas máquinas fotográficas, vem à memória: 1114 era o telefone da casa dos meus avós.

_____Parece que ouço a vó, telefone na mão: “Pronto. Aqui é onze-catorze.” O aparelho bege ficava na bancada do armário, entre os frascos de comprimidos e a lata de biscoitos.

_____trim trim

_____Às vezes, a vó levava um pano de prato na mão; noutras, o leque verde-água. Atendia, com o indefectível: “Pronto. Aqui é onze-catorze”. 

_____Naquele tempo, lembro bem, poucos algarismos compunham uma linha telefônica. Talvez, por isso, eu ainda recorde os telefones lá de casa, do escritório onde o pai trabalhava, da loja da madrinha...

_____trim trim

_____Se a vó desconfiasse que a ligação vinha de outra cidade, decantava: “Aqui é quatro-meia-dúzia-dois-onze-catorze”. Nunca dizia seu nome ou o do titular da linha. “Sei lá quem tá do outro lado, e o que vai fazer com essa informação”, ouvi dizer, certa vez, à vizinha.

_____Sentado na cozinha, eu ficava encucado. Suspendia as lutas entre meus índios e caubóis, olhava o trinca-ferro na gaiola: pra quê falar o número do telefone todo?

_____Numa manhã fria de férias, a vó gritou lá da copa: “É onze-catorze! Quer falar com quem?”. A Zora Yonara fazia previsões no rádio, eu espalhava as cartas do jogo da memória na mesa. Parei, encarei a sabiá que saltitava no quintal: hoje vou perguntar pra ela.

_____A vó voltou à cozinha ajeitando o lenço no cabelo. O vô veio atrás, querendo saber quem era.

_____ “Um desocupado qualquer”, comentou, enchendo a panela com água da torneira.

_____ “Tá lotado de vagabundo por aí passando trote”, o vô resmungou, arrastando as sandálias no terreiro.

_____Arisca, a sabiá voou para o alto da mangueira. Da gaiola, o trinca-ferro me estimulou: Ô, vó, por que tem que falar o número do telefone?

_____Ela acendeu a trempe do fogão, remexeu o arroz:

_____“Porque perguntaram quem que tava falando. E não sou besta de dar meu nome pra desconhecido nenhum.”

_____Desvirei duas cartas, errei outro par. Cismado, comentei: Se perguntam o nome, é porque já sabem o número do telefone, uai.

 ____“Quem liga tem que dizer com quem quer falar. E não ficar perguntando quem que tá falando. Pode ser golpe, ou trote de gente à toa.”

_____O rádio trazia mais notícias do Rio, alguma coisa sobre um tal Castor que, como eu, também gostava de um joguinho. Sob a jabuticabeira, o vô xingava a bola que caíra perto da cerca. Outra que ele vai furar com a faca, pensei. E fiquei imaginando a raiva dos meninos da vizinhança quando vissem a bola, murchinha da silva, jogada na lixeira.  

_____trim trim

_____Tencionei levantar e atender, a vó fez um gesto com a colher de pau: “Fica sentadinho aí”. Enxugou as mãos no pano de prato, correu à copa. “Pronto. Aqui é onze-catorze”...

_____Apesar do vento frio, abro um pouco a janela.

_____Tiro a Bic e a prancheta da gaveta: mais um expediente começa. Felizmente, hoje poderei encerrá-lo mais cedo.

_____O sistema inicializa.

_____Recordo a casa da vó, o telefone, as panelas no fogão branco, a lata de óleo de coco, o vô pelos cantos a resmungar, o filtro de louça, o rádio na mureta da cozinha, a fruteira de madeira, a mesa onde eu jogava, as árvores sombreando o quintal, a sabiá a debochar do trinca-ferro... entre tantas reminiscências, a voz da vó se sobrepondo:

_____ “Aqui é onze-catorze.”

 

Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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