Pelas Sedosas Mãos da Mentira

“Todas as certezas que no corpo lhe estremeciam, tinham a dimensão de um porta fechada cuja chave somente ela ambicionava guardar." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA 

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_____Existem vidas que se vestem assim. Como uma mentira. Vidas que se oferecem à sedução do sol para esconder as trevas frias que carregam por dentro.

_____Vidas como a dela.

_____Gostava de acreditar que era uma acrobata. Por isso, aquela ânsia, quase louca, em descobrir trapézios capazes de lhe desafiar todas as possibilidades. Acrobacias que só ela teria o mérito de concluir com distinção, como se o seu mundo fosse um palco onde pudesse sentir-se a maior atração da plateia que, no entanto, sabia invisível. Lá no alto, podia construir a ilusão de que toda a sua linguagem artística de circo era merecedora de verdadeiros aplausos.

_____Afinal, se fingisse ser heroína, se mergulhasse de cabeça em todas as habilidades impossíveis, talvez os medos lhe fugissem. E o espetáculo da loucura passaria a ser um cenário onde apenas os outros desfilavam como atores.

_____Mas bem escondida, estava a convicção tão profunda de que as paisagens onde se deleitava não serviam para mais nada senão para lhe aliviar a solidão que o orgulho nunca poderia aceitar.

_____A atenção salvava-a daquilo que não queria ver. Por isso corria, corria doidamente, garganta seca, olhar desvairado a brilhar como febre doentia. Não lhe importava o caminho, desde que o chão que pisasse lhe soasse à salvação do próprio abismo. Fingir a bondade, desimaginar a existência da maldade, inventar o amor como uma alegria suspensa a alimentar-lhe a expetativa de nunca se encontrar cara a cara consigo própria.

_____As janelas escancaradas da ruína que nela morava, podiam ser perigosas. Roubavam-lhe os sonhos. Magoavam-na. Não admitiria dissipar-se por entre as suas sombras sem história. Sempre lhe fora urgente medir o tamanho dos vazios com fitas feitas de flores e, com elas, adornar a escuridão.

_____Todas as certezas que no corpo lhe estremeciam, tinham a dimensão de uma porta fechada cuja chave somente ela ambicionava guardar.

_____Era a sua felicidade imperfeita com aquele travo doce que fere a alma.

_____Há mentiras que se despem assim. Corpos desabitados, sentimentos esvaídos, pesadelos que tocam as raízes da pele e nunca adormecem.

_____E a vergonha, uma verdade imortal que se nega até à exaustão.


 TEXTO: Paula Freire 

SITE: Nas Minhas Linhas te Confesso... - Crónicas 

Paula Freire é natural de Lourenço Marques, Moçambique, e reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. Prefaciadora e autora das imagens de capa de várias obras no campo poético e narrativo, tem publicado dois livros de poesia, "Lírio: Flor-de-Lis" (Editora Imagens e Publicações, 2022) e "As Dúvidas da Existência: no heteronímia de nós" (em coautoria com Rui Fonseca, Farol Lusitano Editora, 2024). Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, tendo organizado uma exposição com trabalhos seus, na cidade do Porto (a convite da Casa da Beira Alta), em setembro de 2022, sob o título: "Um Outono no Feminino: De Amor e de ser Mulher".

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