O amolador

"Ninguém sabia onde o amolador de facas morava, nem mesmo seu nome. A gente só sabia que ele aparecia de vez em quando. Um senhorzinho acima de qualquer suspeita." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Ontem vi o amolador de facas. Daqueles que andam com suas bicicletinhas pelas ruas.

_____Poderia jurar que eles não existiam mais. Que estavam extintos, feito o rinoceronte negro. Que haviam sucumbido à obsolescência programada, “Compre facas novas!”. Que tinham, enfim, ficado na Mooca da minha infância.

_____Como o que de tempos em tempos adentrava a vila pedalando sua bicicleta mágica, tocando a inconfundível melodia na flauta pan, avisando as freguesas que ele estava no pedaço. Meu avô, às vezes minha avó, atentos às mensagens sonoras do bairro, desciam as escadas trazendo os utensílios que precisavam de um trato. Uma faca embotada, alguma tesoura cega, um alicate de unha. Então a bicicleta, tal um Transformer, virava a geringonça de afiar. As rodas ficavam suspensas numa espécie de cavalete e, ao pedalar em falso, o esmeril girava. O ritmo era importantíssimo: nada de corrida, que aquilo não era aula de spinning. Devagar, ele ia pedalando e afiando, afiando e pedalando, parando de vez em quando para conferir se já estava bom.

_____Eu achava engraçado o nome da profissão, “amolador”. Amolar, para mim, era incomodar. Tinha um garoto na escola que me amolava. Puxava meu cabelo, inventava apelido. Ninguém sabia onde o amolador das facas morava, nem mesmo seu nome. A gente só sabia que ele aparecia de vez em quando. Um senhorzinho acima de qualquer suspeita. Deveria ser o avô querido de alguém, um tio zeloso, um pai de família. Pode ser também que não tivesse ninguém e vivesse sozinho. Sabia que o rinoceronte é um dos animais mais solitários do mundo?

_____A freguesa de ontem apareceu no portão. Ela traz a faca de cortar bife. Ele examina o fio, faz muxoxo. É, não está boa, não. Hora de o Transformer entrar em ação. Pena, cheguei tarde; não sei se ele anunciou sua chegada no quarteirão, como fazia o amolador do meu passado. Que não incomodava ninguém.

_____Na rua onde moro hoje não passa afiador. Nem de faca, nem de alicate, nem de tesoura. Nunca mandei, aliás, afiar minhas facas. Existe amolador de alegria? A minha bem que anda precisando. Às vezes, sinto-me como o amolador: pedalo, pedalo, e não saio do lugar.

_____A freguesa avalia o resultado, faz sinal de aprovação com a cabeça. De longe, ela se parece com minha avó. Minha avó tinha facas bem afiadas. Língua também.

_____E eu pensando que os amoladores ambulantes haviam ficado na Mooca da minha infância. Vai ver, o de ontem é um deles. Veio pedalando, no tempo e no espaço. Levou quarenta anos. Finalmente chegou, com sua flauta pan.

( Imagem: caderninhodeideias.wordpress.com/2010/02/01/o-amolador-de-facas/ )




 TEXTO: Silmara Franco 
INSTAGRAM: @silmarafranco 

Silmara Franco é paulistana e publicitária. Nasceu em 1967 no bairro da Mooca, onde viveu por mais de três décadas. Hoje vive em Campinas/SP. Resistiu a transferir seu título de eleitor, apenas para poder visitar de vez em quando o colégio onde aprendeu a ler e escrever. Além de cronista, é autora de livros paradidáticos como “Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor” e “Você precisa de quê? A diferença entre consumo e consumismo” (finalista do Prêmio Jabuti 2017), ambos pela Editora Moderna. Manteve até 2021 o blog Fio da Meada. Redes sociais: Facebook e Instagram (fotografia: Helena Pazzetti). 

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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

                               

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