Um Último Olhar

"Ao fotografar, eu decido quando parar o tempo. Do outro lado da objetiva define-se, frequentemente, aquilo que se deseja perpetuar, aprisionado nessa eternidade imóvel." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Creio que um fotógrafo se reconheça, acima de tudo, na solidão. Capta formas vivas entre cintilâncias e obscuridade. Compõe, com os dedos da vontade e da paciência. Vigilante do que escapa aos outros, grava detalhes que, na loucura da rotina, passam despercebidos à perceção de muitos.

_____E, por inerência, o fotógrafo é um poeta. Um guardador de cores e emoções. Contador de histórias boas e más. O clique é um poema silencioso. A revelação, uma confidência de bocas que emudeceram, lágrimas que secaram e rostos que fugiram.

_____A máquina, essa, é tão só a extensão da memória. Às vezes, guarda o que nos assombra depois de nos permitir captar, não somente o que se revela na claridade, mas também o que a escuridão, obstinada, nos escondeu. Talvez por isso, secretamente, sempre temi o instante em que o brilho do reflexo fica desabitado de si e se remete ao simples, mas profundo, momento da recordação.

_____Não pensava nisso, porém, quando naquela tarde, movido por um desses impulsos que se confundem com saudade, me dediquei à limpeza do pó das caixas de cartão empilhadas nos cantos da casa. Acessórios decorativos consagrados ao lar dos solitários. Quinquilharias que envelheceram por fora enquanto aguardavam, adormecidas, pela minha coragem para me sentar, as abrir e escutar o que tinham para me dizer. Acredito que existem objetos que conseguem esperar muito mais do que os homens.

_____Perdidos entre mudanças e esquecimento, lá estavam o antigo tripé e os rolos inteiros da velha Rolleiflex. Uma pilha de negativos dobrados. Remotas fotografias que já não reconhecia. E, à espreita, no fundo da tralha, um envelope fechado, desbotado, com um selo da década de 70, já gasto.

_____Olhei-o desconfiado. De repente, o coração calou-se por um segundo. Depois, sorri sozinho. O carimbo mostrava a data de 31 de outubro desse ano. Aquele mesmo dia...

_____Bom, estes mistérios não acontecem duas vezes! Julgo que a curiosidade é uma mania dos que não sabem envelhecer. Por isso abri-o, devagar, com a ponta do dedo. Uma reverência involuntária num gesto quase supersticioso.

_____Numa folha dobrada, reconheci a longínqua caligrafia, redonda e ingénua. A letra era minha:

_____As pessoas nunca partem. Apenas mudam de lugar dentro das fotografias.

_____Registar o tempo é reter a permanência, e ninguém o faz acidentalmente.

_____Há frases que não nos lembramos de ter escrito porque, quem sabe, tenham sido ditas por nós numa outra vida. Mas havia ali uma verdade inquietante. Para desarrumar o desconforto, voltei o olhar para a janela, onde as luminescências do fim de tarde desenhavam a última curva sobre o berço da noite.

_____Quando os meus olhos regressaram ao interior da caixa aberta, detiveram-se na nostalgia de uma fotografia a preto e branco, bem por cima do amontoado de bugigangas. Jurava ser impossível não ter reparado logo nela.

_____Segurei-a entre os dedos enquanto pensava na teimosia das coincidências.

_____Era de um grupo de amigos, num dia de verão, com a impertinência do sol a incandescer as gargalhadas soltas. E eu, de câmara em punho, a acreditar na inocência da vida.

_____Olhei para cada um deles com a estranha impressão dos que observam uma constelação já extinta. Ali estavam, estáticos, naquele pedaço de papel. Mas vivos, afinal, pela substância que deixaram ficar em mim.

_____Dois levados pela morte. Outros quantos, fugitivos sem aviso prévio.

_____E ainda aqueles que eu próprio expulsei, pela traição, ou por segurança, por me recusar a continuar a ser o que não queria quando estava junto deles. E com pudor, prometi esquecer. Desapareceram.

_____Mas, a verdade, é que reconhecemos sempre o cheiro do que nos fizeram. Palavras que cortaram, gestos que magoaram, presenças que deixaram cicatrizes. Recordações que, por hábito, não nos largam.

_____Almas que teimam em permanecer. Lembranças que vagueiam connosco ainda que estejamos certos de que escolhemos partir delas. Que continuam a acontecer-nos enquanto, disfarçados de indiferença, fingimos seguir em frente.

_____E percebemos que o passado pode tornar-se uma prisão. Porque nunca se vai embora sozinho. Nunca.

_____Constatei como as paredes são realmente honestas quando não temos testemunhas!

_____A fotografia latejava, muda, nas minhas mãos. Repentinamente, afastei-a, aturdido. Senti um desses frios interiores que não nos chegam do corpo, mas de uma invulgar premonição. Seria pelo ângulo da luminosidade ou pela insistência do meu olhar, reparei na subtileza de uma bizarra distorção daquela imagem: as sombras de fundo moviam-se, como espectros com um sopro contido, a exalar uma espécie de silêncio semelhante ao medo. Havia em alguns daqueles olhos... um nítido traço de súplica.

_____Sim, esses rostos sorriam. Mas alguma coisa mudara. Os olhos... Ah, os olhos não podiam fugir!

_____Então, compreendi. Ali, quietas, as figuras não atiçavam unicamente reminiscências... Algumas delas, eram cativas daquele espaço. O tempo a negar-lhes liberdade.

_____E, então, compreendi. Pode ser isto, também, a fotografia. Uma cela silenciosa. Uma forma de punição discreta. Perfeita. De certa forma, justa.

_____É igualmente uma escolha, com o poder de imprimir uma marca que ninguém consegue apagar. Ao fotografar, eu decido quando parar o tempo. Do outro lado da objetiva define-se, frequentemente, aquilo que se deseja perpetuar, aprisionado nessa eternidade imóvel. A eternidade do que se deixa no coração de quem fez o registo. Amor ou dor.

_____Porque, registar o tempo é reter a permanência, e ninguém o faz acidentalmente”.

_____Fechei a caixa. Sorri para mim mesmo. Sorriso interior, inaudível, prolongado, de alívio.

_____Debrucei-me sobre a janela. Vi a irrevogável réstia luz de outubro a estender-se pelo mundo. Atravessou o vidro e pousou, como uma benção, em cima das minhas mãos.

_____Um último olhar.

_____As pessoas nunca partem. Apenas mudam de lugar dentro das fotografias”.

_____Há segredos assim. Acasos destes que têm qualquer coisa de espantoso. Decerto divino. Porventura, sobre-humano.

_____Ou, eventualmente, não tenham sido aquelas pessoas que mudaram de lugar mas, simplesmente, eu. Um fio que coze o passado ao futuro e basta uma fotografia para, nuns minutos, se encontrar paz. Entender é, talvez, a maior libertação que a memória nos pode conceder.

_____E continuarmos a caminhar sem nos deixarmos perturbar pelo que não nos serve, com a certeza de que ainda vive beleza em tudo aquilo que nos fica quando o que é mau já partiu. 


 TEXTO: Paula Freire 

SITE: Nas Minhas Linhas te Confesso... - Crónicas 

Paula Freire é natural de Lourenço Marques, Moçambique, e reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal. Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas das Relações Humanas e do Auto-Conhecimento, bem como à prática de clínica privada. Desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, tendo colaborado regularmente com publicações em meios de comunicação da imprensa local. Prefaciadora e autora das imagens de capa de várias obras no campo poético e narrativo, tem publicado dois livros de poesia, "Lírio: Flor-de-Lis" (Editora Imagens e Publicações, 2022) e "As Dúvidas da Existência: no heteronímia de nós" (em coautoria com Rui Fonseca, Farol Lusitano Editora, 2024). Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, tendo organizado uma exposição com trabalhos seus, na cidade do Porto (a convite da Casa da Beira Alta), em setembro de 2022, sob o título: "Um Outono no Feminino: De Amor e de ser Mulher".

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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade. 

                                       

Comentários

  1. Hoje em dia, em tempos de fotografias digitais, perdeu-se o olhar seletivo, numa infinidade de disparos de cliques aleatórios, querendo muitas vezes registrar banalidades que não têm a intenção de permanecer, podendo ser descartadas com outro clique.
    Por essa razão, trata-se de um texto reflexivo de quem possui olhar poético, retratando com precisão aquilo que envolve a fotografia. Depende de um olhar preciso, atento e sensível para eternizar um momento especial.
    “O fotógrafo é um poeta que escreve com a luz”
    (desconheço a autoria)
    .
    [ Comentário: Paulo Cesar Paschoalini ]

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