O Baleiro

"De vidro, três andares, o baleiro estava sempre abastecido. Bala Juquinha, 7 Belo, bala de goma, delicados e caramelos, numa profusão de cores e sabores..." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )  

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_____Da venda dos meus pais, não é da balança Filizola vermelha ou do cheiro do café moído na hora que mais me lembro. Nem da máquina de cortar frios que quase decepou meu dedo. É do baleiro.

_____Eu tinha seis anos quando meus pais resolveram empreender e compraram o ponto. Fiquei triste porque Dona Angelina não ficaria mais em casa o dia todo comigo, e sim pesando arroz, feijão e batata para a freguesia do bairro, com Seu Tonico ao lado, servindo Velho Barreiro aos homens do pedaço. Em compensação, quando eu fosse na venda, poderia comer doces à vontade e, no meu entendimento, de graça.

Roda, roda,

Roda baleiro, atenção

Quando o baleiro parar

Ponha a mão

 

_____De vidro, três andares, o baleiro estava sempre abastecido. Bala Juquinha, 7 Belo, bala de goma, delicados e caramelos, numa profusão de cores e sabores, tão ao alcance das minhas pequenas mãos. “Só mais um!”, eu pedia. Queria morar naquele baleiro.

_____Havia também uma vitrine de madeira com portinhas de correr, espécie de portal para outra dimensão, feita de glicose. Maria-mole, pé-de-moleque, doce de batata-doce, chiclete Ping Pong e suas tatuagens fajutas, chocolate de guarda-chuvinha, Dadinho, paçoca Amor. Eu não sabia por onde começar.

Pegue a bala mais gostosa do planeta

Não deixe que a sorte se intrometa

 

_____Por dezoito anos, o baleiro fez parte do negócio de secos e molhados da família. Girando feito planeta, ora num sentido, ora noutro. Mas o sentido não estava na boca? Já grande, suas balas não me encantavam mais. Continuavam, no entanto, fazendo a alegria das novas gerações de fregueses-mirins.

_____Quando meu pai se desfez da venda, anos depois de enviuvar e cansado de tocar o barco sozinho, alguém perguntou, “E o baleiro?”. Ninguém quis. Uma velharia, candidata a estorvo.

_____Perguntei aos irmãos esta semana, “Que foi feito dele?”. Não se lembram. Eu deveria tê-lo guardado, nem que fosse no porão. O arrependimento não é doce.

_____Vi um para vender, dia desses. Novinho em folha, réplica dos originais. Prestei atenção em suas tampas, tão perfeitas e lustrosas. Não havia nelas nenhum amassadinho, ou qualquer outra cicatriz deixada pelo uso. Que graça tem baleiro sem história?

_____Queria tanto uma bala Juquinha agora. 




 TEXTO: Silmara Franco 
INSTAGRAM: @silmarafranco 

Silmara Franco é paulistana e publicitária. Nasceu em 1967 no bairro da Mooca, onde viveu por mais de três décadas. Hoje vive em Campinas/SP. Resistiu a transferir seu título de eleitor, apenas para poder visitar de vez em quando o colégio onde aprendeu a ler e escrever. Além de cronista, é autora de livros paradidáticos como “Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor” e “Você precisa de quê? A diferença entre consumo e consumismo” (finalista do Prêmio Jabuti 2017), ambos pela Editora Moderna. Manteve até 2021 o blog Fio da Meada. Redes sociais: Facebook e Instagram (fotografia: Helena Pazzetti). 

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A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

                             

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