Fogo no Moinho

"Já vestido, o dublê pegou um arco e uma aljava cheia que alguém esquecera dentro do vestiário masculino, para a sua sorte." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Conto ) 

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_____Aquela era para ser só mais uma noite tranquila de folga para Vinicius. No entanto, o dublê teria os seus planos frustrados, ele só não sabia disso ainda.

_____Tudo o que o rapaz precisava após o incidente no estúdio 49 era relaxar um pouco e esquecer da confusão em que se metera. Só tinha de lidar com um pequeno detalhe antes: desfazer-se da fantasia que utilizara quando libertara os reféns no set de filmagem da novela medieval O Trono de Pedra algumas noites atrás.

_____A questão era que não podia simplesmente devolver o traje ao departamento de figurino, muito menos deixá-lo num canto qualquer dos estúdios da rede Planeta de televisão. Até agora conseguira manter a sua identidade em segredo, mas se alguém descobrisse, estava frito: perderia o emprego. Nem mesmo ousara conversar a respeito com Tina, a sua namorada de longa data, por conta disso. Ela já fizera demais arrumando-lhe a posição de dublê. Não queria que se metesse em problemas por sua causa.

_____A solução que Vinicius encontrara fora esconder as vestes em outro lugar. O seu apartamento estava fora de questão, pois Tina passava a noite lá várias vezes por semana e não demoraria a descobrir o traje. Foi então que o rapaz se lembrou do seu armário na ONG Na Mosca.

_____A organização, que ensinava a prática arco e flecha para crianças carentes, ficava no Morro do Moinho, uma das maiores favelas de Alexandria. Vinicius começara a frequentar o projeto social ainda na adolescência, logo após ter abandonado a ginástica olímpica. Com o tempo, até mesmo passou a dar aulas de arco e flecha na ONG durante o seu tempo livre.

_____Era no vestiário da Na Mosca que o rapaz se encontrava agora. Tinha acabado de pôr a bolsa de lona contendo a fantasia no escaninho. Só faltava trancar o cadeado com segredo que somente ele conhecia. Foi quando escutou a comoção do lado de fora. Alguém gritava desesperadamente, pedindo socorro.

_____Pela porta entreaberta do vestiário, o dublê conseguiu ver o que se passava. Um rapaz magro e narigudo, de cabelos muito ruivos, pedia ajuda a João do Arco, o índio guarani fundador do projeto social. Vinicius demorou um pouco, mas reconheceu de quem se tratava: era Lino, um antigo aluno da ONG, que deixara de participar das aulas há alguns anos. Na época, ele era bem gordinho e os colegas o apelidaram de Frangolino, devido a estranha semelhança com o personagem do desenho animado dos Looney Tunes. Com o tempo, a alcunha evoluíra para Lino e assim ficara. Se a memória do dublê não lhe falhava, o nome de batismo do jovem, que agora implorava de joelhos por ajuda a João, era Augusto.

_____ “Por favor, tio. Você tem que me ajudar, senão eles vão me matar!” – o garoto, que agora deveria ter uns quinze anos, implorava.

_____ “Com o que você estava na cabeça quando foi se meter com o Cubano?”

_____Aquilo definitivamente não era bom, pensou Vinicius. Todo mundo no morro do Moinho sabia quem o Cubano era. Juan Mendonza y Castillo, vulgo Cubano, era o imigrante mafioso que atualmente controlava o tráfico na favela e na região.

_____ “Eu... eu comecei a usar...” – gaguejou Lino.

_____ “E agora está devendo pro Cubano?” – João indagou.

_____ “Mais ou menos...”

        “Como assim mais ou menos? Ou você está devendo ou não...”

_____ “É complicado, tio...”

_____ “Então, me explique, meu filho...”

_____ “Mas o senhor vai me ajudar, tio?”

_____ “Se for com dinheiro, não sei se tenho o suficiente para te ajudar, Augusto.”

_____ “Já passei desse ponto, tio.”

_____ “Quer dizer que...?”

_____ “Que o Cubano quer me matar...”

_____ “O que você fez?”

_____ “Nada não, tio...”

_____ “Corta essa de tio, meu jovem. Nem sou seu parente, nem sou tolo a esse ponto de acreditar que o Cubano quer te matar por nada!”

_____Lino abaixou a cabeça, desconsolado pela reprimenda.

_____ “Eu... eu estava devendo o Cubano, sim... uma boa quantia aliás... estaria literalmente ferrado se não fosse o meu primo Moacir, que trabalha pro Cubano. O Moacir fez com que o chefe perdoasse minha dívida, desde que eu aceitasse trabalhar de aviãozinho pro Cubano...”

_____Aquilo não ia prestar, imaginou o dublê, enquanto observava João coçar a cabeça.

_____ “E...?” – pressionou o guarani.

_____ “Eu comecei a pegar, só um pouquinho, uma parte de toda carga que eu estava levando, sabe?” – o adolescente explicou, fazendo o gesto para pouco com o dedo indicador e o polegar direitos.

_____ “Você ficou maluco, porra?” – João exclamou, erguendo os braços. – “Não é à toa que o Cubano quer te matar, se você está roubando dele!”

_____Foi então que se ouviu o primeiro tiro para o alto. Quando a contagem chegasse a três, era sinal que os homens do Cubano estavam vindo para realizar a sua “justiça”.

_____Vinicius nem hesitou. Destrancou o armário e começou a vestir o traje. João o ajudara muito em período difícil da sua vida, levando-o para ONG e ensinando-o a esquecer de seus problemas através do arco e flecha. Não merecia perecer como efeito colateral no tribunal do crime que se seguiria. Até mesmo Lino não merecia tão triste sina, sendo apenas mais uma vítima do vício em drogas.

_____Já vestido, o dublê pegou um arco e uma aljava cheia que alguém esquecera dentro do vestiário masculino, para a sua sorte. Em seguida, seguiu para a parede onde ficava o basculante do local. A peça, um quadrado, era relativamente larga o suficiente para um homem escorregar para o lado de fora. Foi o que Vinicius, ou melhor, o Caçador fez.

_____Do lado de fora do prédio, que desembocava numa mata, o rapaz se deu conta que tinha de pensar num plano. O melhor seria pegar os capangas de surpresa, como fizera da outra vez no estúdio. Para tanto, precisava de um ponto em que pudesse observar a movimentação dos bandidos e ao mesmo tempo permanecer oculto. A laje da sede da ONG serviria a tal propósito. Mas ainda restava a questão de como chegar lá em cima.

_____O jeito foi improvisar. O Caçador viu uma corda perto de uns restos de material de construção utilizados numa recente reforma no prédio do projeto social. Uni-a a uma flecha e a disparou com o arco até um ponto do muro, que não era muito alto. Com esse arpéu de segunda mão, só teve o tempo de chegar ao telhado, graças aos seus talentos de ginasta olímpico, antes que a seta se rompesse.

_____O mascarado respirou aliviado e logo começou a procurar o melhor lugar para se posicionar, dando se conta de que não havia. A mureta da laje era baixa, não chegando nem na cintura do mascarado, impossibilitando que se protegesse e atirasse as flechas ao mesmo tempo.

_____Um segundo disparo fez-se ouvir. O Caçador teria de arriscar, não havia espaço para hesitação. Começou a observar vultos se moverem furtivamente numa das vielas que desembocavam na sede da Na Mosca. Contou pelo menos cinco.

_____Pegou duas flechas da aljava e preparou-as para dispará-las simultaneamente. Agora era tudo questão de segundos.

_____O terceiro disparo ecoou pelo ambiente. O Caçador mirou e soltou a corda do arco, disparando as setas em direção aos punhos dos dois primeiros capangas. Ambas acertaram em cheio, fazendo com que os bandidos soltassem as armas.

_____ “Mas que porra...! Ele atirou uma flecha em mim!” – escutou algum deles gritar.

_____Logo viu que apontavam em sua direção. Os disparos de arma de fogo vieram em seguida. O mascarado só teve tempo de se jogar no chão da laje. Puxou mais duas flechas da aljava, armou-as no arco e levantou de novo, contando com a sorte.

_____Naquele instante, os tiros tinham parado. Não havia margem para erros, muito menos tempo. Vinicius disparou por instinto, acertando mais duas flechas no alvo: uma pegara no cotovelo do outro braço de um sujeito que já tinha acertado antes e a outra perfurara fundo o ombro dum sujeito de regata branca, que aos poucos se tornava escarlate.

_____Os bandidos a agora já estavam na esquina do quarteirão em que a ONG se localizava e o arqueiro se deu conta de que não pensara no seu plano direito. Já incapacitara dois dos cinco bandidos, mas os três restantes ainda poderiam adentrar o projeto social e realizar a sua missão.

_____Tinha de levá-los para o mais longe possível dali. Resolveu saltar para a laje da casa ao lado, na qual se encontrava um solitário varal de roupas.

_____ “É aquele maluco da TV!” – exclamou um dos membros do trio remanescente, referindo-se a filmagem que as câmeras do estúdio haviam gravado de sua performance anterior.

_____Enquanto saltava, o Caçador sacou mais três flechas da aljava. Caiu fazendo um rolamento e já estava pronto para disparar e assim o fez. Novamente, todas as setas acertaram o alvo pretendido: uma traspassara o cotovelo do braço do sujeito que usava o boné virado para trás, a segunda acertara no abdômen do bandido que vestia camisa de futebol, bem na região do baço. Por fim a terceira varara as palmas do último indivíduo, que havia soltado a arma devido ao coice que essa lhe dera.

_____Cheio de adrenalina como estava, Vinicius não conseguiu deixar de gritar para os bandidos que jaziam lá embaixo:

_____ “Um dia da caça e outro do Caçador!” – anunciou com a voz rouca de emoção.

_____Então, tratou de continuar a pular os telhados morro a dentro, completamente animado com os rumos que a sua noite tomara. Não fora o que planejara, mas estava ótimo mesmo assim.


Leia também o conto intitulado "Pânico no Estúdio 49[03.02.2024]






 TEXTO: Francisco Dorotheu 

Francisco Dorotheu é um autor mineiro, conhecido pelas obras "O Samurai e o Lírio", "Os caminhos do sertão" e "O Mistério de Dorothy Arnold", todas disponíveis no formato e-book na Amazon.
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