A Escrita como Migração e Movimento

"Queremos que nossas palavras encontrem eco no outro. Que nossa história sirva de abrigo para quem nos lê. Que seja companhia nos delírios, devaneios, sonhos." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )

.Text written in Portuguese - Select a language in TRANSLATE >. 


_____Dia desses, relendo María Andruetto, sublinhei que escrita é migração. Migramos porque algo nos falta; e é justamente essa falta que nos convoca a escrever. A autora, em Por uma literatura sem adjetivos (2012), afirma que quem escreve busca um “continente para um conteúdo que escorre ou transborda”. Gosto muito dessa imagem: a escrita como tentativa de conter um transbordamento interior ou, talvez, como tentativa de escutar o silêncio que nos habita. No entanto, ela mesma adverte: aquilo que chega até nós ainda não é a escrita pronta, mas apenas um sussurro. Então, por que escrevemos, afinal? Andruetto nos oferece a chave: porque o que importa é a busca, e não o resultado em si. Escrever é se lançar ao desconhecido, e isso envolve muito mais dificuldade do que prazer.  

_____Toda escritora ou escritor conhece bem os labirintos do processo criativo. A cada projeto concluído, renascemos. Não saímos os mesmos de uma escrita que exige camadas e camadas de trabalho: a busca por tom, ritmo, cadência, pela palavra que se encaixa perfeitamente na frase. E a cada frase bem realizada, saímos um pouco transformados. O escritor se torna forjado pela palavra (ou pela busca da palavra). Isso porque, mais importante que o destino é o caminho. O esboço. O processo em si. Queremos que nossas palavras encontrem eco no outro. Que nossa história sirva de abrigo para quem nos lê. Que seja companhia nos delírios, devaneios, sonhos.  

_____Nas palavras de Andruetto, a literatura é melhor quando é redemoinho: quando se move, se desacomoda. A relação entre o canonizado e o não canonizado é sempre dialética: não existe centro sem periferia. O literário só se define pelo contato com o não literário. Essa ideia ressoou profundamente na minha pesquisa de mestrado, em que recorri à teoria do rizoma, proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs (2021), para pensar os encontros possíveis entre a literatura canônica e a considerada não canônica. Ao longo do percurso, percebi que, se continuasse a conceber os livros como árvores, ou seja, com hierarquias e troncos bem definidos, deixaria de me conectar com tantos outros textos que, embora tidos como “menores”, têm potência literária.  

_____A imagem rizomática rompe essa lógica vertical. Ela propõe uma literatura em que todos os livros estejam em pé de igualdade, conectando-se e desconectando-se livremente, sem necessidade de hierarquias. Nessa perspectiva, é possível ler tudo, abrir espaço para tudo, reconhecer que a margem também é centro em potência. Se não dermos chance ao que está fora, não haverá transformação. E sem transformação, não há literatura viva. Parar é um movimento que não combina com a literatura. A literatura é caminhante, é deslocamento. E é por isso que considero um equívoco acreditar que o cânone é o mesmo para todos. Cada leitor tem o direito e, sobretudo, a liberdade de construir os seus próprios cânones.  

_____Da mesma forma, me recuso a escrever conforme as demandas do mercado. Busco uma estética que me leve também ao autoconhecimento. Quero explorar novas formas de escrita, investigar histórias reais que possam se tornar bons romances, vasculhar o que foi varrido para debaixo do tapete, as sujeiras de um passado recente que muitos insistem em esconder. A Amazônia é rica demais para que eu precise olhar para fora dela. Minhas histórias moram aqui.  

_____Aprendi também com Andruetto a confiar na capacidade cognitiva da ficção, essa mentira que revela verdades. Mas não falo da ficção vazia trazida pelas redes sociais, falo das ficções que demandam tempo de leitura e reflexão. Aquelas que nos convoquem imaginar, se quisermos sobreviver. Porque o que está posto, sabemos bem: não está funcionando.  





 TEXTO: Myriam Scotti 

INSTAGRAM: myriamscotti_   
Myriam Scotti reside na cidade de Manaus-AM. É mestre em literatura e crítica literária pela PUC/SP; possui curso de extensão em formação do leitor pela mesma instituição. Autora de diversos títulos e gêneros literários, entre eles Terra úmida, romance vencedor do prêmio literário de Manaus em 2020; Quem chamarei de lar? romance juvenil do PNLD 2021. 
_______________________________________________
A articulista atua como Colaboradora deste Blog e o texto acima expressa somente o ponto de vista da autora, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade. 

                                         

Comentários