"Nenhum curso de gestão de tempo como lidar com a exaustão emocional de ser necessária o tempo todo. Claro que estou cansada."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____O despertador toca às 5h30. O som insistente me arranca do sono, mas o corpo pede mais alguns minutos. Aperto a soneca. Dez minutos depois, ele toca de novo. Respiro fundo e finalmente levanto. O dia já começa com pressa. Enquanto meu marido prepara o café das crianças, eu sigo para a primeira batalha do dia: acordá-los. Eles se encolhem nas cobertas, resmungam, pedem mais cinco minutinhos. Tento de tudo – converso, faço cócegas, puxo o edredom. Nada funciona de imediato. Depois de muita insistência, consigo tirá-los da cama e colocá-los no banho.
_____Corro para a cozinha e preparo as lancheiras. Olho o relógio: o tempo está se esgotando. Nada de enrolação. Agora é escovar os dentes, vestir os tênis e sair. A aula do mais velho começa às 6h40! Se meu marido não está viajando, ele os leva para a escola, e eu, teoricamente, posso iniciar minha rotina de trabalho. Mas o que seria um período de concentração e produtividade logo se transforma em uma sequência de interrupções. Gosto de começar o dia ouvindo as notícias, na tentativa de me conectar com o mundo além da minha casa. Depois, tento me concentrar: leio, escrevo, gravo vídeos, respondo e-mails, assisto aulas.
_____No meio disso, aparecem lembretes piscando no celular – consultas para agendar, aniversários para lembrar, compromissos da escola. O trabalho é constantemente atravessado por demandas da casa e da família. Além disso, três vezes por semana, antes de buscar as crianças, pratico musculação – um remédio do qual já não posso abandonar. O corpo pede movimento, a mente precisa dessa pausa.
_____Embora a manhã seja livre para o trabalho, a verdade é que há sempre algo exigindo minha atenção. Preciso gerenciar a casa e a agenda dos meninos. E, claro, adivinhem para quem a escola manda os recados pelo aplicativo? Para quem os consultórios ligam para marcar consultas? Quem está no grupo do WhatsApp da escola? Quem recebe os convites de aniversário e precisa providenciar os presentes? Com quem as terapeutas mais conversam? Quem responde às perguntas de todos os profissionais que lidam com as crianças? Quem sabe de cor o número do sapato deles, a turma da escola, as comidas preferidas? Ou seja, minha manhã de trabalho é interrompida incontáveis vezes. Eu tento me concentrar, mas sempre há uma notificação no celular, uma dúvida, um imprevisto. E, quando finalmente parece que terei um tempo para produzir, já é hora de buscar as crianças.
_____À tarde, quando as crianças estão em casa, as demandas se multiplicam. É lanche, brigas para apartar, tarefas para convencer a fazer, pedidos dos mais variados – incluindo o clássico “Mãe, para de trabalhar e vem assistir desenho!”. Meus dois filhos são neurodivergentes, o que significa que precisam de uma atenção ainda mais intensa. Nenhum curso de gestão de tempo ensina como lidar com a exaustão emocional de ser necessária o tempo todo. Claro que estou cansada. Sei que minha condição financeira me dá privilégios, mas emocionalmente, ando abalada. Oras, se até eu, que tenho suporte e estrutura, me sinto sobrecarregada, como estão as mães que não têm com quem dividir as responsabilidades? Como estão as mulheres que precisam trabalhar fora, voltar para casa e ainda dar conta de tudo sozinhas?
_____No meio do caos, leio constantemente sobre o mundo inteiro já discutir o crescente número de mulheres que não querem ser mães. Não é difícil entender o motivo. Olhamos para as gerações anteriores e vemos nossas mães, avós e bisavós carregando sozinhas o peso da casa e da criação dos filhos. Agora, depois de experimentar algum nível de liberdade e independência, muitas mulheres simplesmente não querem voltar a esse lugar de sobrecarga e renúncia. Não à toa, vejo igrejas e grupos conservadores tentando reconquistar mulheres para o papel de “rainhas do lar”. As tradwives, por exemplo, defendem um retorno aos papéis de gênero tradicionais – a mulher como dona de casa submissa, o homem como provedor absoluto.
_____Porém, não precisamos de um retrocesso. O caminho não pode ser de volta, mas de reinvenção. Precisamos de algo novo – mais justo, mais inclusivo, que contemple as diferentes formas de família. Penso que o que realmente pode transformar essa realidade não é convencer mais mulheres a aceitarem sozinhas a carga do lar e da maternidade, mas sim incluir os homens no cuidado e na divisão das tarefas domésticas, pois o modelo atual não vai convencer nenhuma mulher que já tenha experimentado a liberdade. Afinal, o que está em jogo não é apenas a rotina de uma mãe sobrecarregada, mas um modelo social inteiro que depende do sacrifício das mulheres para funcionar. Um modelo que considera normal que mães exaustas vivam no limite da sanidade, enquanto pais “ajudam” quando podem.
_____É urgente que paremos de desmerecer a sobrecarga materna e chamá-la pelo que realmente é: um problema social urgente. O fato de tantas mulheres estarem repensando a maternidade deveria ser um alerta. Se ser mãe significa renunciar à própria identidade, da carreira, da saúde mental, algo está muito errado. A solução não é resgatar a mulher para a casa, como pregam os movimentos conservadores. A solução é trazer o homem para dentro da casa e do cuidado. É construir uma nova cultura em que a criação dos filhos e a gestão da casa sejam divididas de forma igualitária.
_____Se quisermos que futuras gerações de mulheres desejem ser mães, precisamos oferecer a elas um modelo de maternidade que não seja sinônimo de exaustão e renúncia, pois o modelo atual não convence.
.TEXTO: Myriam Scotti.
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