"Ao mesmo tempo que amava passar o dia na praia, brincando com meu baldinho e fazendo castelos na areia, eu também sofria; o sol mandava a fatura."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____Se o tempo amanhecesse bom no domingo, meu pai anunciava: “Vamos!”.
_____Pega a esteira, o chapéu, não esquece o bronzeador Bozzano, “Mãe, já vou com o biquíni por baixo?”, as toalhas, os sanduíches, o refrigerante, o guarda-sol, a prancha – de madeira, não existia de isopor.
_____Fusca cheio, vambora. O programa: farofar em Santos. Seu Tonico no volante, Dona Angelina ao lado, eu e meus irmãos atrás. Todos sem cinto de segurança. Deus existe, meu bem.
_____O Google Maps diz que da Mooca até o litoral são setenta quilômetros. Bom para um bate-e-volta. Como não existia GPS nos anos 1970, eu perguntava de quinze em quinze minutos se a gente já estava chegando. Era minha maneira de calcular o tempo e a distância da viagem.
_____No caminho pela Estrada Velha de Santos, ou Via Anchieta, tinha Cubatão. Ouvia tanta história sobre a cidade, as chaminés das indústrias lançando fumaça preta no ar, dia e noite, crianças nascendo sem cérebro, que esse nome – Cubatão – já havia, para mim, virado metonímia para poluição. Lembro-me também de achar graça no nome de uma rodovia no pedaço, a Pedro Taques, que eu acreditava ser Pedro Táxi. Por certo, um taxista muito famoso.
_____Ao mesmo tempo que amava passar o dia na praia, comendo salgadinho, brincando com meu baldinho e fazendo castelos na areia, eu também sofria; o sol mandava a fatura. Vermelha como a roupa do Papai Noel, logo eu me encheria de bolhas doloridíssimas. Minha mãe tinha lá suas panaceias para essas horas e, quando a dor passava, eu gostava quando ela – que nenhum pediatra leia – as furava com agulha de costura e linha. Era meio nojento quando vazavam. Depois vinha a fase de descascar; uma coceira dos diabos, mas a despelação era divertida. Não existia protetor solar naquela época, só bronzeador – um veneno para minha tez de Branca de Neve. Fui uma criança sardenta, não por acaso.
_____Certa vez, Seu Tonico estacionou, como sempre, em uma rua próxima à orla. Passamos a manhã na praia e, na hora do almoço, voltamos ao carro. Surpresa: o Fusca havia sido arrombado. Lembro-me da expressão preocupada dos meus pais, contando os trocados que haviam sobrado num cantinho do porta-luvas que passara despercebido pelo ladrão. Se a farofada já estava em andamento, o frango assado estava garantido.
_____Então, quando fiz seis anos e entrei na escola, meus pais resolveram empreender; viramos, então, proprietários de uma modesta vendinha. Como o batente era de segunda a segunda, o fim dos passeios a Santos foi decretado.
_____Tanta coisa mudou. O advento do protetor solar com fator 50 cancelou as queimaduras e as bolhas. Moro a mais de setenta quilômetros de Santos, não entro num Fusca há décadas (suspiro). Na Estrada Velha, agora, só gente e bicicleta. Cubatão, vejam só, deixou para trás o estigma de “Vale da Morte”. O sanduíche da minha mãe é só saudade, e meu pai mal se lembra de que dia da semana estamos. Meus filhos não sabem o que é andar de carro sem cinto de segurança, não conhecem Santos, tampouco o prazer da legítima farofagem. E, apesar da minha atual pouca disposição para a dupla mar & areia, minhas lembranças daquele tempo continuam ensolaradas. Arrisco dizer que foram as farofas mais bem temperadas da vida.
( IMAGEM - Facebook: Apaixonados por Fusca )
Silmara Franco é paulistana e publicitária. Nasceu em 1967 no bairro da Mooca, onde viveu por mais de três décadas. Hoje vive em Campinas/SP. Resistiu a transferir seu título de eleitor, apenas para poder visitar de vez em quando o colégio onde aprendeu a ler e escrever. Além de cronista, é autora de livros paradidáticos como “Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor” e “Você precisa de quê? A diferença entre consumo e consumismo” (finalista do Prêmio Jabuti 2017), ambos pela Editora Moderna. Manteve até 2021 o blog Fio da Meada. Redes sociais: Facebook e Instagram (fotografia: Helena Pazzetti).
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