Rosto

"E da mesma maneira que a obra de arte só se completa quando há interlocutor, nós também só nos completamos quando encaramos o rosto do outro que nos revela." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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_____Vez em quando, se saio para jantar com o meu marido, num vale-night improvável, mas não impossível, costumamos escolher ir ao mesmo restaurante que frequentamos há anos. Adoramos chegar àquele espaço tão aconchegante, para ser recebidos pelas pessoas que já nos conhecem e parecem adivinhar até os nossos pensamentos. Cumprimentos todos, como velhos amigos e só isso já torna a saída um deleite. O garçom nos acompanha até a nossa mesa cativa e já pergunta se vamos querer a entradinha de sempre. É claro que a noite é um sucesso, porém, não há surpresas.

_____Provavelmente, com o passar dos anos, preferimos mesmo evitar situações desagradáveis, e, por isso, dificilmente ousamos. Não à toa, cultivamos certa dificuldade para nos desfazermos daquele lençol, ou daquele par de tênis ou da camiseta surrada, que já se acomodam em nossos corpos feito luvas. No entanto, embora possa nos causar incômodos, a verdade é que, se quisermos nos abrir para o aprendizado e para a evolução, será necessário o esforço, às vezes dantesco, de desviar-se de si próprio. Ou seja, é preciso deixar de lado nossos gostos já empoeirados pelo comodismo e permitirmo-nos o que nos soa até repulsivo. Afinal, o desconhecido gera ansiedade e medo, emoções com as quais pouco queremos lidar.

_____Por outro lado, se até a mesma obra de arte pode ser admirada de tantas formas diferentes ao logo do tempo, nós, enquanto humanos também não somos imutáveis. Estamos sempre em devir. E da mesma maneira que a obra de arte só se completa quando há um interlocutor, nós também só nos completamos quando encaramos o rosto do outro que nos revela. Todavia, experimentamos um momento de pouca comunidade e cada vez mais isolamento. Assim, experimentar o lugar do outro se torna tão difícil quanto disputar uma prova olímpica. Imersos em algoritmos, só assistimos ao que nos agrada e, dessa forma, parece que sempre temos razão ou que nossas ideias de mundo são as únicas possíveis.

_____Diante disso, quando me pedem dicas de leitura e me avisam que querem algo leve e alegre, calo-me. Literatura não é uma viagem para Disney, onde todos os sonhos são possíveis. Livros existem para nos cutucar, incomodar, tirar do conforto, reverberar e nos convidar à reflexão. Ao testar, através da leitura, outros mundos, outros rostos se revelam e revejo a mim mesma e minha contribuição para o mundo. Isso é a literatura.

 

 TEXTO: Myriam Scotti 

INSTAGRAM: myriamscotti_ 
Myriam Scotti reside na cidade de Manaus-AM. É mestre em literatura e crítica literária pela PUC/SP; possui curso de extensão em formação do leitor pela mesma instituição. Autora de diversos títulos e gêneros literários, entre eles Terra úmida, romance vencedor do prêmio literário de Manaus em 2020; Quem chamarei de lar? romance juvenil do PNLD 2021. 
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