“A princípio ignoro. Nada mais fácil que fingir que não ouvi, afinal, estou com os fones... Mas, como insiste, sou obrigado a saciar a sua curiosidade."
REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica )
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_____Me cumprimenta e, sem cerimônia, puxa a cadeira. Senta, ou melhor, se larga na cadeira, fazendo a mesa balançar. Por pouco, minha cerveja não entorna. Tenta puxar assunto: “esquentou demais hoje, né”. Assinto com a cabeça, mantendo os olhos e a atenção no celular.
_____Ela insiste: que a onda de calor tem a ver com o El Nino, quer saber se estou acompanhando as notícias sobre as tempestades, as enchentes e os desabrigados no sul... Pauso o vídeo. Tomo um gole, assinto outra vez.
_____A bola rola entre as cadeiras, toca meu chinelo. Um garoto de uns treze anos, short e cabelos encharcados, se aproxima. Agacha, leva a bola, deixando pegadas pela cerâmica. Ela comenta, saudosista, sobre sua infância… Ai, sei bem onde vai dar quando desembesta a falar dos tempos de meninice. Começa rememorando as brincadeiras na rua, nossos colegas de escola, depois deságua nos traumas. Nessas horas, lágrimas rolam a recordar o pai bebum, a mãe costurando para colocar o pão em casa...
_____ “Tá vendo o quê aí, de tão interessante?” Feito uma criança enxerida, aponta o dedo torto e enrugado para meu celular.
_____A princípio, ignoro. Nada mais fácil que fingir que não ouvi, afinal, estou com os fones... Mas, como insiste, sou obrigado a saciar sua curiosidade.
_____ “Cê vem pro clube pra assistir novela!” comenta, espantada, como se ficar sentada vigiando o filho correndo na quadra fosse a maior e mais imperdível diversão do universo. Penso nisso, mas não digo: já basta aguentá-la todos os dias lá no trabalho.
_____Num domingo infernal como este, topo tudo: trazer os meninos ao clube, gastar os tubos com sorvete e refrigerante, mesmo sabendo que, à noite, quando entregá-los à mãe, suportarei as reclamações e ameaças de sempre: “em tempo de pegar insolação”, “não almoçaram, só comeram porcaria”, “vou levar isso ao conhecimento do advogado, você vai ver”... Até aguentar aqueles caras que jogam baralho ali na frente, gritando como vikings ensandecidos, eu topo. Só não dá mesmo para tolerar é a falinha arrastada e sonsa dela.
_____Mas, ela não vai desistir. Eu sei, conheço esse troço há uns quinze anos. Não fosse a estabilidade e meu vencimento razoável, já teria pedido exoneração. Porque, sinceramente, a convivência com ela e mais uma meia dúzia de beócios lá da secretaria, é de ensandecer qualquer mortal. Talvez seja por isso que nosso ex-chefe teve AVC e nunca mais voltou.
_____ “Também gosto muito de novela”, comenta. Felizmente, os urros de um descamisado lá na mesa a silenciam. Aumento o volume: as falas do Raul Pelegrini são o ponto alto da trama. Sempre me apeguei aos vilões. E os vilões de Gilberto Braga têm um lugarzinho cativo na minha memória televisiva.
_____A bola rola de novo para debaixo da mesa. Dessa vez, é uma garota que vem buscá-la. Os cabelos pingam água e cloro, o biquíni pouco tapa a puberdade em flor. Deixo o capítulo de lado: como Gabriela no telhado, estica os dedos para pegar a bola. Os cabelos ondulam os ombros; os seios, peras suculentíssimas, se insinuam.
_____ “Que novela é essa que você tá vendo, hein?”
_____Impertinente, como sempre, tenho ganas de gritar. A garota, feito a Anita da minisérie do Manoel Carlos, volta à piscina, onde os meninos, rindo como diabretes, a esperam. Será que perceberam meu olhar, indago à cerveja. Súbito, noto um par de olhos estrábicos que me encaram: não desistem de saber que novela estou assistindo.
_____ “E o que te importa?”, penso em gritar. A lembrança da garota, contudo, suaviza minha frase: é Pátria Minha, colega, entrou essa semana no Globoplay.
_____Na piscina, a bola salta de mão em mão. A garota ajeita a alça do biquíni. Os visigodos aqui do lado bradam e socam a mesa. Não entendo direito o que ela está dizendo. Acho, algo sobre a infância, de novo. Devo ter franzido a testa, porque repete:
_____ “Tô dizendo que, lá em casa, a gente via todas as novelas. Mas essa aí não pudemos ver. Eu lembro direitinho: no dia do primeiro capítulo, o pai chegou de porre, jurando que ia acertar as contas não sei com quem. A mãe fez um sinal pra mim e meus irmãos. A gente ficou quietinho no sofá, e ela foi tentar acalmar o pai. Aí, de repente, ele começou a gritar que ‘aquilo não ia ficar assim, que mexeram com o homem errado’, e abriu o armário embutido que ficava embaixo da escada. A mãe foi atrás. ‘Não faz besteira, homem, pensa nos seus filhos!’. Lembro direitinho dela, as mãos juntas, implorando. Mas o pai tava fora si. Aí ele pegou a espingarda. Eu e meus manos ficamos escondidos atrás do sofá. A mãe tentou arrancar a arma dele, ele empurrou a mãe, que desequilibrou. Ela bateu as costas na estante, a televisão caiu e quebrou. O pai saiu pra rua. Se fez alguma coisa, e se acertou as contas com alguém, não fiquei sabendo... Só sei que a gente ficou pra mais de ano sem televisão. E toda noite o pai gritava que a gente era umas pestes dos infernos e que, por culpa nossa, ele ia ter que entrar num consórcio pra comprar uma televisão...”
_____O filho dela se aproxima, aponta o joelho a sangrar. Pelo que entendi, empurraram-no. Feito uma leoa, ela parte para a quadra, o menino soluçando atrás.
Minhas crianças brincam no parquinho. Na piscina, os meninos continuam a joga, indiferentes à garota que, estirada de bruços na espreguiçadeira, se entrega aos deleites do sol.
_____Mantenho o capítulo pausado._______________________________________________________________
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