Ao senhor retratista

"Com dois anos, entenda, sequer lembro a sua voz. Mas dos flashes que espocavam no lugar do misterioso passarinho, ah desses não me esqueci." 

REVISTA VICEJAR – LITERATURA ( Crônica ) 

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De: viscondecerqueira@gmail.com
Para: 
senhorretratista@gmail.com

 

Senhor retratista,

_____Escrevo-lhe estas linhas enquanto uma antiquária, num contralto quase bethaniano, anuncia câmeras fotográficas de várias épocas. Polaroid, Yashica, Leica, Rolleiflex, Xereta, a Tekpix que diziam ser “coisa boa” e “a mais vendida do Brasil”, outras câmeras digitais de não-sei-quantos megapixels (hoje insuficientes aos nossos olhos ávidos por imagens em alta resolução)... enfim, tem de tudo na banca.

_____Senhor retratista, venho lhe dizer o quanto sou grato pelas fotografias que tirou do meu eu-menino. Talvez não se lembre delas, ou de mim (eu mesmo não recordo direito seu rosto, sempre atrás daquela Tron)... Hoje o tempo voa, amor/escorre pelas mãos, canta o carinha ali no coreto e, nessa barafunda espaço-temporal, quem padece é nossa memória. Por isso, sempre que necessito me reencontrar, abro o velho álbum de capa dura. Lá estou: soprando a vela no bolo onde confeitaram um enorme arco-íris; em pé na cadeira, rodeado pelos personagens do Sítio do Picapau e dezenas de bolas coloridas; sorrindo pra mãe enquanto um monte de crianças querem devorar o bolo e as balas de coco; na cama entre carrinhos, caminhõezinhos, pega-varetas, resta-um, cuecas, camisetas, o Fofão ainda na caixa a olhar tudo com seu jeitão apatralhado; no cavalinho do pai, alfinete na mão, pronto pra estourar o balão donde saltariam caubóis e índios, línguas-de-sogra e pirulitos sobre a meninada impaciente.

_____Não são muitas as fotografias: eram caros os filmes; tinha que levar os rolinhos pra revelar em Ubá pois, segundo o pai, “lá ficava mais em conta”; esperar dias e dias até receber os retratos com os negativos. Não são muitas as fotografias, senhor retratista, porque também não custavam barato seus honorários. Tomei conhecimento disso tempos depois, quando a mãe explicou que “foi mais negócio comprar uma Instamatic de segunda-mão”. É, a crise tava maus: a inflação galopava incessante, virava e mexia trocavam a moeda, transferiram o pai na empresa e as viagens, que lhe rendiam uns extras no final do mês, rarearam.

_____Perdão, avancei alguns anos nas reminiscências. Quando o senhor esteve lá em casa naquela noite de outubro, eu ainda não tinha noção dessas coisas; não tinha como saber que uma cavalgadura desgovernava o país (nem sabia o que era país); muito menos que o senhor cobrava, caro, pra mostrar um passarinho que nunca saía da câmera. Com dois anos, entenda, sequer lembro a sua voz. Mas dos flashes que espocavam no lugar do misterioso passarinho, ah desses não me esqueci: irritavam demais meu olho estrábico.

_____Voltando ao motivo de escrever este e-mail: apesar de a nostalgia se assenhorar de mim quando abro o velho álbum, sinto alegria ao me ver entre suas páginas. Por isso, senhor retratista, agradeço-lhe imensamente os registros de um tempinho que, ao menos praquele menino de dois anos, foi maravilhoso.

_____Sem mais, me despeço. E enquanto esta mensagem percorre as incompreensíveis veredas da web, vou pra casa reabrir o álbum de capa dura.


Mineiro da cidade de São Geraldo, graduado em Direito e História, Servidor Público, escritor de contos, poemas e crônicas. Publicou "Confissões", pela Editora Porto de Lenha, e "A vida segue" pela Caravana Editorial. Divulga seus escritos no blog "Reminiscências Literárias", Facebook, Instagram e no site "Recanto das Letras". 
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